Geada negra: 50 anos do evento climático que modificou o agro do Paraná

Fenômeno severo registrado em 1975 determinou o fim da produção de café em larga escala, abrindo caminho para o avanço dos grãos, principalmente a soja
Aquele dia 18 de julho de 1975 havia amanhecido como outro qualquer, mas reservava a João José Resende Paiva uma surpresa que marcaria sua vida e a agropecuária do Paraná. Com 27 anos, à época, o rapaz que tocava a propriedade da família em Cambé, município da Região Metropolitana de Londrina, desconfiou que algo estava errado quando encontrou, no pasto, um touro nelore que, ao chacoalhar o dorso, espalhava gelo ao redor.
Confira as fotos da matéria no site do Sistema FAEP.
Aquele cenário era uma pequena mostra dos efeitos da geada negra, umas das mais intensas catástrofes climáticas do século passado. O episódio quase exterminou a produção de café no Paraná, até então, o maior produtor nacional. Além dos reflexos na cultura cafeeira, o fenômeno modificou severamente a agropecuária estadual, abrindo caminho para o avanço dos grãos, principalmente da soja.
“Vivi perfeitamente essa geada. Era uma sexta-feira de lua minguante. Eu tomava conta da fazenda da família, inclusive morava nela. Quando acordei, estava tudo branco. A coisa foi tão severa que, perto do meio-dia, ainda havia poça d’água com dois centímetros de gelo de espessura”, recorda Paiva.
Em 1975, a família dedicava 336 hectares à produção de café. O então “ouro verde”, como era conhecido o grão em razão de sua força econômica para o Paraná (e para o Brasil), era vendido já beneficiado para exportadores. Isso era possível porque a fazenda dos Paiva, fundada em 1951, contava com lavador, secadores a lenha, terreirão com 10 mil metros quadrados e máquina de beneficiar.
“Meu pai, meu avô e meu bisavô foram grandes cafeicultores. A geada foi o tiro de misericórdia [no café]”, sentencia Paiva. “Na época, a gente tinha pouca soja e milho, pois ainda era o começo, e pecuárias de leite e de corte. Após a geada, aumentamos a pecuária e as lavouras de cereais. Continuamos com 20% do café, pois meu pai era apaixonado pela cultura”, complementa.
Os dados comprovam a mudança de perfil da agropecuária paranaense após a ocorrência da geada negra. De acordo com a série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na safra de 1975, com a colheita encerrada antes do fatídico dia 18 de julho, o Paraná colheu 10,2 milhões de sacas de café (48% da produção nacional). Na temporada seguinte, a produção despencou para míseras 3,8 mil sacas, fazendo com que a participação estadual na produção brasileira representasse insignificantes 0,1%.
O que é a geada negra?
A geada negra é um fenômeno climático severo que ocorre quando o ar frio e seco causa um rápido congelamento da seiva das plantas, levando à necrose (morte) dos tecidos vegetais. Diferentemente da geada branca, que forma cristais de gelo visíveis, a negra atua causando danos internos, com efeitos devastadores para a agricultura.
A geada negra é mais rara porque requer uma combinação de frio extremo ear seco, que costuma ocorrer com mais frequência em cidades serranas do Sul. O fenômeno, muitas vezes, é agravado pelo vento mais intenso, que retira calor mais rapidamente das plantas e nem sempre forma gelo na superfície como a geada branca, pois não há umidade relativa do ar suficiente para isso.
“A geada não permitiu nem a recepa [corte rente ao chão para renovar a planta] dos pés de café. Foi um período muito difícil. Vi muitas famílias indo embora para cidade. Arrisco dizer que ali começou o êxodo rural no Paraná”, conta o produtor rural Edson Dornellas, entãocom 12 anos, que também acompanhou de perto o drama imposto pela geada negra.
Na época, o avô e o pai de Dornellas tocavam duas propriedades no município de Nova Esperança, uma dedicada integralmente ao café, enquanto a cultura dividia espaço com pecuária na outra.
“Nós, como outros tantos produtores, tivemos que arrancar todo o café. No nosso caso, plantamos frutas para ter dinheiro mais rápido. Mas as mudanças começaram no meio rural, com a entrada de novas culturas”, diz Edson Dornellas, produtor rural de Nova Esperança.
A geada negra expandiu um caminho agrícola sem volta no Paraná. A soja, que na safra 1976/77 ocupava 2,2 milhões de hectares, se espalhou como um rastilho de pólvora nas décadas seguintes. As vastas áreas antes ocupadas por pés de cafés deram espaço à oleaginosa, que, com o passar do tempo, assumiu o protagonismo do setor rural paranaense. Hoje, mais de 5,8 milhões de hectares são dedicados ao grão a cada temporada.
“Naquele tempo não tinha soja em abundância. A geada negra foi a mola propulsora para entrada do grão, pois o pessoal migrou”, afirma o produtor Sebastião Luiz Inocente, testemunha ocular do fenômeno ocorrido há cinco décadas.
Na época com 19 anos, Inocente estudava Medicina Veterinária na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e ajudava o avô no sítio voltado a pecuária de leite e o pai, na propriedade onde mantinham pecuária de corte, ambas em Cambé.
“Não foram só os cafeicultores que sofreram. O desespero foi geral. No nosso caso, o pasto queimou todo. Como tínhamos quatro hectares de cana, antes de azedar, usamos para alimentar os animais, pois ainda estava palatável. Conseguimos manter parte do gado bem magro. Mas alguns animais mais sensíveis morreram de fome”, relembra. “Cambé era 99% de café. A geada foi a pá de cal. Nos anos seguintes, a soja entrou pra valer”, conta o produtor que dedica grande parte da propriedade de 960 hectares à soja, ao milho e ao trigo, no sistema de rotação.
Cinco décadas depois da geada negra, a cultura do café está reduzida a pouco mais de 25 mil hectares no Paraná (na década de 1970, os cafezais chegaram a ocupar mais de 615 mil hectares). Atualmente, o Paraná é referência em café de qualidade, também conhecido como especiais, produzido em pequenos núcleos produtivos. “Hoje, você conta nos dedos quem ainda está no café”, resume Inocente.
Por outro lado, como se diz pelo interior do Paraná, “a soja está sendo plantada até na porta dos cemitérios”. O Estado produziu 21,4 milhões de toneladas do grão na safra 2024/25, com tendência de aumento a cada safra, graças ao ganho de produtividade dentro da porteira.
Sistema FAEP atuou para a recuperação do setor
Logo no dia seguinte à geada negra, em meio aos relatos de perdas brutais no interior, governos federal e estadual iniciaram um programa para minimizar os efeitos dos estragos. O ministro da Agricultura na época, Alysson Paulinelli, do governo do presidente Ernesto Geisel, esteve em Curitiba. Acompanhado do governador Jayme Canet, Paulinelli propôs um plano de emergência para socorrer os produtores atingidos, evitando o colapso das atividades agrícolas.
O Sistema FAEP colaborou diretamente neste processo. A entidade realizou um levantamento das perdas, que chegavam a 950 milhões de pés de café mortos. O presidente na época, Mário Stadler, pediu urgência nas ações de mitigação dos estragos causados pelo fenômeno climático, como a liberação imediata do seguro agrícola e a manutenção de preços para assegurar a venda dos estoques de café.
A entidade também solicitou medidas para a pecuária, como autorização para o abate de animais atingidos pelo frio, congelamento de preços de rações e linhas de crédito para financiar máquinas e equipamentos danificados pelo frio. Mesmo assim, o setor agropecuário paranaense já estava fadado a mudança de perfil. A soja avançaria de forma desenfreada, a ponto do governador Canet, em mensagem enviada à Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) em março de 1976, diagnosticar o novo cenário no interior do Estado: “a boa performance de culturas, como a soja, são alternativas às plantações destruídas de café”.
“O Sistema FAEP atuou fortemente para auxiliar na recuperação do setor, como faz há 60anos. Aquele foi um período muito difícil, que exigiu resiliência dos nossos produtores rurais. Mudanças ocorreram, mas a nossa agropecuária segue forte”, destaca o presidente interino do Sistema FAEP, Ágide Eduardo Meneguette.
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Geada Negra de 1975 completa 50 anos
 
As lembranças de uma testemunha ocular naquele dia fatídico. Participação do estado na cafeicultura brasileira caíra de 48% naquele ano para 0,1% em 1976
 
Rogério Recco
 
Início da manhã de 19 de julho de 1975. O governador Jayme Canet Júnior aterrissa no Aeroporto Regional Gastão Vidigal em Maringá. Só ele, além dos pilotos. Faz muito frio e o objetivo da inesperada visita à cidade não poderia ser outro: no dia anterior, a pior geada do século devastara a cafeicultura estadual.
 
MANCHETE – “Não sobrou um pé de café”, era a manchete de capa da Folha de Londrina naquele dia. Londrina, que se vangloriava de ser a Capital Mundial do Café, tentava ainda dimensionar o estrago causado pela geada, mas havia uma unanimidade: nunca se vira um desastre de tal proporção no estado, a cafeicultura era o carro-chefe da economia paranaense até aquele momento. E todos tinham, também, uma certeza, incluindo o governador: o Paraná enfrentaria tempos difíceis.
 
ANOS DIFÍCEIS – O próprio Canet era de uma família de cafeicultores, com propriedade em Bela Vista do Paraíso. Por isso, sentia na pele o que dezenas de milhares de produtores estavam passando naquele momento. A safra de 1975 havia sido colhida, mas as dos anos seguintes estariam irremediavelmente perdidas.
 
VISITA – Poucos sabiam que o governador desceria naquele início de manhã em Maringá, quase ninguém o aguardava. Apenas alguns poucos técnicos do escritório local da Secretaria da Agricultura. Ele embarcou em um veículo e foi levado para ver cafezais onde hoje é a Avenida Guaiapó, ao lado do Parque de Exposições que tinha o nome do presidente Emílio Garrastazu Médici. 
 
ABALADO – Só havia cafés por ali, todos queimados. Canet entrou na lavoura, examinou. Cabisbaixo, parecia abalado. Aquela região da cidade representava com fidelidade a situação da cafeicultura. Realmente não havia sobrado um único pé de café.
 
COCAMAR – Dali, o pequeno grupo dirigiu-se à sede da então Cooperativa de Cafeicultores de Maringá Ltda (Cocamar), na Avenida Prudente de Morais. Ao chegar, o governador viu vários produtores que estavam sentados no saguão do prédio e foi ao encontro deles, para puxar conversa. Ouviu o que já sabia, que as perdas haviam sido totais, que já na véspera o vento gelado começara a queimar as lavouras e o cheiro de folhas queimadas estava por toda parte.
 
NADA IGUAL – Prenúncio de que algo de muito grave estava por acontecer. Ouviu que no amanhecer do dia 18 tudo se encontrava sob gelo e até mesmo a água dos cochos dos animais e das caixas d’água haviam congelado. A vegetação rasteira e endurecida dos quintais e da roça, quebrava quando alguém a pisava. Muitos daqueles agricultores nunca tinham visto nada igual e o governador, impactado com os relatos, procurava se mostrar solidário. Quando alguém o reconheceu e perguntou se era ele mesmo, ali na frente de todos, o governador do estado, Canet respondeu: “governador e cafeicultor”.
 
SABOR AMARGO – Foi juntando rapidamente uma multidão no local e não demoraram a avisar a diretoria da cooperativa, no pavimento superior do prédio, que o governador do estado chegara de surpresa e estava ali, no térreo, de prosa com cafeicultores cooperados. Desceu então, rapidamente, o presidente Constâncio Pereira Dias para saudar a autoridade e fazer um relato da situação nas regiões atendidas pela entidade. Ao final, o governador aceitou o convite para degustar um sanduíche na cantina da cooperativa, sentado em uma banqueta, onde também provou uma xícara de café, cujo sabor amargo, mais do que nunca, fazia jus ao sentimento dos cafeicultores paranaenses naquele momento.
 
ZERO – Para se ter uma ideia da dimensão da famosa geada negra de 1975, a área cultivada com café foi reduzida a zero da noite para o dia, ao mesmo tempo em que milhares de famílias de trabalhadores perderam suas ocupações nas fazendas, desencadeando o êxodo rural, um dos mais dramáticos movimentos sociais da história do país. O Paraná nunca mais seria o mesmo. Naquele ano, o estado havia colhido 10,2 milhões de sacas de café, 48% da produção brasileira. No ano seguinte, a safra se reduziu a míseras 3,8 mil sacas. Nenhum grão chegou a ser exportado e a participação paranaense caiu para 0,1%. (Jornal Cocamar)

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