Cúpula climática começa sem Trump e de líderes de China e Índia, com impactos na busca por segurança energética que freiam agenda de substituição dos combustíveis fósseis
Cerca de 170 países se credenciaram para participar presencialmente em Belém da Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-30), num momento global desafiador, marcado por guerras, um tarifaço imposto pelo presidente americano Donald Trump e disputas econômicas entre as maiores potências do planeta. Além disso, o pano de fundo é questionamentos até à própria ONU, reflexo principal da crise do sistema multilateral.
O cenário internacional impõe dificuldades para o avanço da agenda de clima, que se arrasta, COP após COP, com discussões polarizantes sobre a transição energética e sobre quem paga a conta do financiamento climático.
Nas últimas duas edições, o conjunto dos países decidiu iniciar uma transição para longe do uso de combustíveis fósseis (na COP-28, em Dubai) e triplicar o financiamento oferecido por países desenvolvidos aos países em desenvolvimento, chegando a US$ 300 bilhões anuais (na COP-29, em Baku), sem que a meta anterior de fornecer US$ 100 bilhões (cerca de R$ 537 bilhões) fosse sequer cumprida.
O compromisso de afastamento dos combustíveis fósseis motivou protestos dos petroestados e passou a ser colocado em dúvida sobre os efeitos sobre a oferta de energia e a busca por autossuficiência gerada pela guerra entre Rússia e Ucrânia. Novo baque ocorreu com o retorno de Trump ao poder nos Estados Unidos, com uma agenda negacionista sobre a emergência climática e a pegada de carbono.
Para Clayton Seigle, pesquisador sênior e titular da Cátedra James R. Schlesinger em Energia e Geopolítica no Center for Strategic and International Studies (CSIS), o contexto com guerras, sobretudo na Ucrânia, e seus efeitos sobre o mercado do petróleo e a disputa entre China e EUA fazem com que as decisões políticas sejam movidas por mais segurança energética do que pelo prisma da sustentabilidade e da transição energética. Isso poderia enfraquecer a capacidade de ação multilateral e comprometer o ritmo de políticas verdes.
“Vimos, no último ano, mudança no equilíbrio do tripé energético, que tenta equilibrar sustentabilidade, acessibilidade e segurança. Nos Estados Unidos, a direção agora privilegia a segurança do abastecimento, afastando-se do foco em sustentabilidade que marcou os quatro anos anteriores”, diz Seigle, direto de Abu Dhabi, onde participa da feira ADIPEC, a Exposição e Conferência Internacional de Petróleo de Abu Dhabi.
“Estamos em um momento em que tudo gira em torno da segurança e do acesso à energia — e do impacto no bolso — em detrimento da sustentabilidade”, acrescenta.
O especialista diz que, apesar das sanções por causa da guerra na Ucrânia, o petróleo russo não saiu do mercado: apenas mudou de destino. A Rússia exporta hoje quase os mesmos volumes de antes da guerra, porém direcionados para Índia e China, que se tornaram compradores prioritários graças a descontos. Esses países têm obtido ganhos econômicos — a Índia com margens altas nas refinarias e a China ampliando seus estoques estratégicos de petróleo.
Para ele, a reorganização dos fluxos do petróleo russo, sem eficácia na aplicação de sanções e como esquemas para burlá-las (como as frotas fantasma), manteve o mercado bem abastecido e os preços mais baixos, o que reduz a pressão política sobre os
EUA para manter sanções rígidas ou restringir outros produtores como Venezuela e Irã. E a discussão pode se ver refletida durante a COP-30.
Até o anfitrião – o Brasil – lida agora com suas “contradições” internas, como diz a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e amplia frentes de exploração de petróleo na Margem Equatorial da Foz do Amazonas às vésperas da COP-30.
Desde o ano passado, diversos países se manifestaram descontentes com os valores que ficaram combinados sobre o financiamento, aquém do US$ 1,3 trilhão considerados necessários – para o qual haverá agora um “mapa do caminho” meramente consultivo.
O cenário adverso à pauta climática se consolidou, a despeito do que mostram indicadores alarmantes sobre o clima. O novo relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) indica que a emissão de gases de efeito estufa bateu novo recorde em 2024, com alta de 2,3% em relação a 2023, impulsionada pela poluição atmosférica provocada por China, Índia, Rússia e Indonésia.
Segundo Pnuma, os novos compromissos climáticos propostos pelos países para reduzir emissões reduzem a escalada de aumento da temperatura da Terra, mas não em ritmo suficiente para alcançar os objetivos do Acordo de Paris, pacto que tenta conter o aquecimento global em 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais.
A guerra comercial disparada pelo tarifaço de Trump envolve uma disputa de longo prazo de projeção e liderança com a China e passa também pelo controle do acesso a reservas de minerais críticos, estratégicos para a transição energética, economia digital e inteligência artificial. O conceito de soberania mineral sobre o acesso, extração e processamento industrial nacional ganhou relevância e entrou na pauta de governos, entre eles o do Brasil.
O tarifaço criou uma crise de confiança de governos em Washington, pois até aliados históricos foram punidos, e motivou uma série de reclamações, inclusive do Brasil e da China, na Organização Mundial do Comércio, a despeito da paralisia do órgão comercial em Genebra, situação que ficou mais exposta e motivou pedidos de reforma.
O Brasil também incluiu na agenda da Cúpula de Líderes da COP-30, que será realizada nesta quinta-feira, 6, e na sexta-feira, 7, anúncios de compromissos para quadriplicar a produção e o consumo de combustíveis sustentáveis e o lançamento de um fundo de investimento voltado à remuneração pela preservação de florestas tropicais (TFFF).
O governo Lula, porém, já baixou as expectativas de angariar investimentos soberanos de países – de US$ 25 bilhões – meta inicial – para US$ 10 bilhões até o ano que vem. A ideia é que governos invistam os 20% iniciais de uma metal de atingir US$ 125 bilhões em aplicações, e os 80% restantes venham do setor privado.
Até o momento, só o Brasil e a Indonésia se comprometeram com aporte de US$ 1 bilhão cada, mas o governo espera novas adesões na Cúpula de Líderes.
“Em vez de ficarmos esperando doação de país rico, que sempre vão dar aquém do que é necessário, porque a dívida já está em em Us$ 1,3 trilhão, criamos um fundo que não será doação, mas investimento. Vai gerar rentabilidade para o investidor e parte da rentabilidade vai financiar países que mantêm floresta em pé”, disse Lula.
“Esperamos que quando terminarmos a apresentação a gente tenha muitos países participando”, continuou o presidente.
Embora a COP-30 comece somente no dia 10, nos dias que antecedem a conferência os negociadores já começaram a se reunir e discutir, impulsionados também pela reunião de líderes. São esperados 57 chefes de Estado e de governo e 143 países representados.
Para a conferência em si, há 170 países credenciados, segundo a presidência. A despeito disso, a ONU registra baixa entrega de metas nacionais. O portal oficial da convenção-quadro (UNFCCC) revela que até o momento somente 69 metas de redução de emissões de gases estufa (as NDCs, contribuições nacionalmente determinadas) foram apresentadas.
Segundo contagem da presidência brasileira e da ONU, 101 países haviam prometido oficializar suas metas até a conferência em Belém e 125, até o fim do ano.
O governo brasileiro dizia que os países estavam preparando as respectivas NDCs, com debates internos – alguns envolvendo parlamentos – e planejando as metas climáticas de forma articulada com planos de desenvolvimento nacionais, detalhamentos e planejamento de setores.
O cenário é considerado frustrante, já que houve mobilização direta envolvendo Lula em duas reuniões em alto nível de líderes, convocadas em conjunto com o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Países-chave e líderes em emissões atualmente ou historicamente, Índia e até a União Europeia, seguem com planos pendentes.
Por isso, o relatório-síntese do secretariado sobre as metas e planos ficou comprometido e com resultados menos confiáveis. Mais de 100 países não publicaram seus compromissos renovados. O estudo parcial levou em consideração apenas dados de 64 países.
Divulgado no fim de outubro, o documento mostrou que as NDCs anunciadas, caso implementadas, reduzirão as emissões de gases do efeito estufa em apenas 10% até 2035. O IPCC – painel de cientistas da ONU sobre a crise climática – calcula que até 2035 as emissões devem cair 60% ante os níveis de 2019, caso os países desejem limitar o aquecimento global a 1,5ºC.
Um dos riscos mapeados por negociadores ouvidos pelo Estadão é de que, em nome de “salvar” o multilateralismo, o governo brasileiro tenha postura pouco ambiciosa e busque construir consensos mínimos. A defesa do sistema multilateral e da resolução negociada de disputas é uma ferramenta clássica da diplomacia brasileira e estratégia para uma potência regional média, como o Brasil.
“O fortalecimento do multilateralismo é absolutamente central. Realmente há esse perigo de as pessoas interpretarem que é apenas retórica. Mas é a melhor arma que existe contra o unilateralismo. Parece obviedade, mas é que estamos vivendo um momento em que as medidas unilaterais estão mais fortes do que há muito tempo”, disse o presidente da COP-30, André Correa do Lago, durante o encontro pré-COP em Brasília. “
Oficialmente, na posição de presidente, o governo brasileiro buscar mediar conflitos e terá de evitar tomar lado nas disputas. As posições brasileiras, no entanto, são conhecidas, e o País conta com aliados, como o México e demais latino-americanos, para representar sua voz e vai “agir por meio de proxys”. Os EUA, mesmo ausentes, podem tentar usar o mesmo expediente para influenciar rumos, por meio de países alinhados, como Turquia, Catar e Arábia Saudita.
Nas reuniões prévias em Brasília, delegações fizeram questão de riscar suas “linhas vermelhas” e houve embates sobre uma transição dos combustíveis fósseis e financiamento. Com poucos avanços concretos, os encontros fizeram as comitivas perceberam até onde poderão avançar ou não, testando a temperatura.
Para especialistas, o desgaste das relações internacionais e o abalo na confiança entre nações criam empecilhos para que se leve adiante uma proposta, defendida por Lula, de que a governança multilateral precisa ter mecanismos de cobrança e punição a quem não cumpre os compromissos.
O presidente sugeriu criar um “Conselho de Meio Ambiente” vinculado à ONU, e viajar o mundo e monitorar a implementação de compromissos, cobrando os países. Do contrário, segundo Lula, nada acontece com quem não age. As NDCs são metas climáticas voluntárias, protocoladas junto ao Acordo de Paris, são voluntários e não há sanções previstas para o descumprimento.
O governo brasileiro e outros celebraram que somente os EUA anunciaram a saída do Acordo de Paris, o que deve ser efetivado em janeiro de 2026. O governo Trump não vai mandar nenhum representante à conferência no Pará.
China e Índia, também no topo da lista de maiores poluidores, vão mandar representantes, mas não os líderes Xi Jinping e Narendra Modi. Da Europa, estarão os líderes da França (Emmanuel Macron), Reino Unido (Keir Starmer), Espanha (Pedro Sánchez), Alemanha (Friedrich Merz), além de Noruega (Jonas Gahr Støre) e Finlândia (Alexander Stubb). Da União Europeia, os presidentes da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e do Conselho Europeu, António Costa.
A chancelaria nacional e negociadores defenderam que o Brasil e outros atores-chave, como China e União Europeia, ocupariam espaços de liderança. Apesar disso, não há liderança clara, e a posição de Trump influenciou a de outros líderes, sobretudo latino-americanos.
Assim como a representação americana se ausentará dos debates, ao menos da Cúpula da Líderes, o governo Javier Milei, da Argentina, não informou planos de participação da delegação da Argentina. O Paraguai, de Santiago Peña, antes amigável com Lula, também se ausentará.
Embora seja de esquerda e ex-cientista vinculada a pesquisas climáticas do IPCC, a presidente Claudia Scheinbaum, do México, é outra baixa confirmada – ela enviará a chanceler mexicana Alicia Bárcena.
Analistas avaliam que, mesmo distantes, os EUA podem jogar pesado e buscar influenciar posições nos bastidores por meio de entrepostos alinhados à pauta pró-exploração de combustíveis fósseis, como Catar, Arábia Saudita, Turquia, entre outros.
“A saída dos Estados Unidos causa um distúrbio. Se eles estão virando as costas para o problema, isso é uma desculpa ótima. Muitos países vão usar a saída dos EUA como biombo para não fazer nada e dizer: ‘Olha, não é hora da gente ser ambicioso agora, porque tá tudo conturbado, guerra… Os Estados Unidos saíram não é à toa, não é hora da gente bancar uma de herói’“, diz Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima.
Para Astrini, a presidência brasileira é o “grande ativo” da COP-30 e pode equilibrar o jogo pressionando por mais ambição: “O cenário geopolítico complexo influencia nas participações, nas ambições e tudo mais. É complexo. O cenário hoje é muito pior”.
Outro observador confidenciou ao Estadão que seria complexo forçar politicamente a aprovação de qualquer acordo com um bloco de 15 países importantes em oposição – se um país apenas fica isolado, a adoção é mais provável.
Esse mesmo especialista também diz que o cenário é de um mundo com “um vilão e nenhum líder óbvio”. A despeito dos apelos por mais liderança e protagonismo europeu e chinês, diante da saída americana, a COP se aproxima sem clareza sobre quem assumirá a agenda e receio dos países sem se comprometer.
A União Europeia, candidata natural a ocupar o espaço de liderança, evita se comprometer por causa da cobrança por aumento de gastos militares para evitar um colapso da Aliança do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que aprovou a meta de elevar o orçamento nacional dos membros para 5% do PIB até 2035.
Observadores veem postura receosa dos europeus em assumir a liderança e se ver cobrada a injetar mais recursos em clima do que gostaria, algo similar ao que deve ocorrer com a China.
Embora Pequim lucre com tecnologias de energia renovável, como as indústrias eólica e solar, o governo do Partido Comunista Chinês evita registrar compromissos e prefere se manter em papel de país em desenvolvimento, dentro das regras da Convenção-Quadro da ONU, portanto, sem obrigação de prover dinheiro.
A China é o país que mais sofre pressão dos países industrializados e desenvolvidos para abrir o bolso. Até 2023, países em desenvolvimento não eram obrigados a reportar emissões e apresentar uma NDC absoluta para todos os setores da economia.
Lula tem dito que esta será a COP da verdade e feito cobranças, mas agora já nega ter ambições de ser “líder climático” e assumiu a defesa – e o custo político – da exploração do petróleo na Região Norte, na Margem da Foz do Amazonas.
“Quando os líderes mundiais se reunirem em Belém, não poderão negar os fatos”, disse o petista a líderes asiáticos na semana passada, na Malásia. “Não é hora de abandonar o Acordo de Paris. Sem ele, perderemos nossa bússola.”
A presidência estima que mais de 170 países já credenciados participem da COP-30. Conforme a última atualização, 159 países conseguiram acomodação em Belém e 28 seguem em negociação por hospedagem (Estadão)




