Estudo inédito da CNA mostra que Brasil perde R$ 16,2 bilhões por ano com infraestrutura precária de vias rurais
Por Vera Ondei
Aos 84 anos, João Martins carrega na bagagem décadas de experiência no campo. Como presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), ele conhece de perto uma realidade que persiste há gerações: o abandono das estradas vicinais brasileiras. “O meio rural sempre foi desassistido. Principalmente o pequeno produtor. Principalmente o nordestino”, afirma Martins, que é baiano. “O governo não olha para aquele pequeno tirador de leite que tira 100, 150 litros, que ele mesmo leva para a cidade. Aquele produtor sofre todo dia na ida e na volta para casa.”
A história que Martins conta é familiar a milhões de brasileiros. O custo de transporte nas estradas esburacadas consome o que o pequeno produtor ganha com o leite. Quando a caminhonete quebra — e a maioria é velha —, leva todo o dinheiro arrecadado com a produção. “Temos de olhar o pequeno, aquele que vive no campo, aquele que dá vida ao campo, aquele que faz com que esse Brasil que nós temos seja possível”, diz o presidente da CNA.
Essa realidade ganhou contornos precisos nesta quarta-feira (8), quando a CNA divulgou um estudo inédito que dimensiona o tamanho do problema. O “Panorama das Estradas Vicinais no Brasil”, desenvolvido em parceria com o Grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-Log), traz números que impressionam: o país perde anualmente R$ 16,2 bilhões apenas em custos operacionais por manter essas vias em condições precárias.
“Investir em estradas vicinais garante o acesso da população aos alimentos, aumenta a competitividade do agro brasileiro e traz qualidade de vida para os produtores, trabalhadores e seus familiares que vivem no campo”, afirma Martins. “O investimento nessas vias é uma política pública essencial, que vai além do escoamento da produção agropecuária. É também instrumento para ampliar o acesso da população rural a serviços básicos de saúde e de educação.”
“Baseado nesse trabalho, vamos ver se a gente consegue mudar não esse Brasil de fachada, não esse Brasil da Faria Lima, mas esse Brasil que é o Brasil maior, onde está o maior número de habitantes: o Brasil rural”, Martins resume a questão com a simplicidade de quem viveu oito décadas no campo
O país possui aproximadamente 2,2 milhões de quilômetros de estradas vicinais, distribuídas em 557 microrregiões. Para colocar em perspectiva: as rodovias pavimentadas somam 211 mil quilômetros no território nacional. Ou seja, existem dez vezes mais estradas vicinais do que rodovias asfaltadas. E por essas vias de terra passam, anualmente, cerca de 1,4 bilhão de toneladas de carga do agronegócio.
“Tudo que a gente produz passa pela estrada vicinal. Tudo que a gente usa no campo como insumo passa pela estrada vicinal”, explica Thiago Guilherme Péra, coordenador do Grupo de Pesquisa e Logística da Esalq-Log. “Esse é um impacto bastante importante. Por isso que muitas vezes ela tem sido negligenciada, mas ela é um elo extremamente importante da nossa cadeia.”
As estradas vicinais se dividem em dois tipos. As terciárias, com largura suficiente para dois veículos trafegarem em sentidos opostos, somam 367 mil quilômetros. Já as “não classificadas” — vias estreitas onde passa apenas um veículo por vez — chegam a 1,8 milhão de quilômetros, representando 84,5% do total. “A gente tem uma dependência gigantesca desse tipo de infraestrutura”, afirma Péra. “Nós temos dado atenção cada vez mais para as rodovias pavimentadas, mas tudo que a gente produz e tudo que a gente usa no campo depende dessas estradas vicinais.”
Para entender a extensão do problema, as equipes da CNA e da Esalq-Log percorreram mais de 1.200 quilômetros em oito microrregiões da Bahia, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará e Paraná. Foram ouvidas 150 pessoas, entre produtores rurais e gestores municipais de infraestrutura e agricultura. O diagnóstico é desolador: apenas 1% dos entrevistados considerou a infraestrutura vicinal como ótima. A maioria classificou as vias como ruins (35%), péssimas (30%) ou regulares (26%).
Thiago Guilherme Péra, coordenador do Grupo de Pesquisa e Logística da Esalq-Log“Buraco foi o principal problema identificado pelos agentes ao longo dessa realidade das regiões prioritárias”, relata Péra. A lista de mazelas inclui ainda ondulações, atoleiros e pontes danificadas ou de má qualidade. “Muitas vezes o produtor vai ter que colocar do próprio bolso, ajustar alguma coisa para conseguir fazer um mínimo de movimentação nas suas propriedades. Essa é a realidade de muitos produtores no Brasil hoje.”
As consequências vão além dos buracos e atoleiros. O sistema atual emite cerca de 3 milhões de toneladas de CO₂ por ano. A baixa qualidade das vias obriga os caminhões a trafegarem em velocidades reduzidas, consumindo mais combustível e gerando mais poluição. Com estradas em padrão superior, seria possível reduzir essas emissões em 32,9%, o equivalente a 1 milhão de toneladas anuais de CO₂.
A Conta que Ninguém Faz
“Esse é um número que assombra, assusta, quando a gente dimensiona quanto que o Brasil está perdendo por ano”, afirma Péra. Os R$ 16,2 bilhões anuais em custos operacionais incluem combustível, manutenção de veículos, insumos, mão de obra e perdas de produto. Sim, perdas físicas de carga. “O caminhão trepida mais. Muitas vezes são caminhões que não têm rolamento adequado. Passa por um buraco, cai carga. Isso acaba gerando uma perda econômica que é bastante significativa.”
O levantamento identificou quais segmentos do agronegócio mais sofrem com a precariedade das vicinais. No topo da lista está o setor de cana-de-açúcar, com perdas estimadas em R$ 2,3 bilhões anuais. Em seguida vêm grãos — milho e soja —, com R$ 2,1 bilhões, e produção animal, com quase R$ 1 bilhão. “Notem que o econômico e o ambiental seguem a mesma ordem no ranking”, observa Péra.
A matemática é simples, mas poderosa. Se as estradas fossem elevadas a um padrão de qualidade média, a economia seria de R$ 2,7 bilhões anuais, o equivalente a quase 0,5% do valor adicionado da agropecuária. Com um padrão superior, o ganho saltaria para R$ 6,4 bilhões por ano, mais de 1% do valor adicionado do setor.
“O investimento de R$ 4,9 bilhões por ano para adequar as estradas vicinais a um padrão mínimo de qualidade não é apenas viável, é estratégico”, afirma Elisangela Pereira Lopes, assessora técnica da Comissão Nacional de Logística e Infraestrutura da CNA. “Estamos falando de um valor que representa menos de um terço do prejuízo anual causado pelas más condições dessas vias, apenas em custos operacionais. Com esse aporte, seria possível melhorar a qualidade de vida da população rural e garantir o escoamento de alimentos com mais segurança e eficiência.”
Investir R$ 4,9 bilhões para economizar R$ 16,2 bilhões. A conta fecha com uma economia líquida de R$ 11,3 bilhões anuais. Esse valor de R$ 4,9 bilhões por ano seria suficiente para adequar 177 mil quilômetros de estradas terciárias em regiões consideradas altamente prioritárias, com custo anual de manutenção de R$ 35 mil por quilômetro. Para elevar o padrão de todas as 367 mil quilômetros de estradas terciárias do Brasil, o investimento necessário subiria para R$ 10 bilhões anuais.
O estudo criou uma ferramenta para orientar essas decisões: o Índice de Priorização das Estradas Vicinais (Ipev). “Precisamos melhorar o Brasil como um todo ou podemos tentar priorizar algumas determinadas áreas?”, questiona Péra. O índice leva em consideração a relevância da estrada para o escoamento da produção agropecuária e as dimensões social, econômica, ambiental e de infraestrutura. “O Brasil tem por volta de 557 microrregiões, 2,2 milhões de quilômetros de estradas vicinais. Precisamos investir em todas as 557 microrregiões? Se tiver recurso, sim. Mas tem como priorizar? Tem.”
Soluções Sem Asfalto
Contrariando o senso comum, Péra é categórico: não é necessário pavimentar as vicinais. “Precisa pavimentar a vicinal? Talvez essa é uma dúvida de muitos. Então não, não precisa pavimentar a vicinal. A gente consegue ter boas vicinais sem ter a pavimentação.” O estudo define três padrões de qualidade para essas estradas.
O primeiro é a condição atual, classificada como “sem padrão”: estradas cheias de buracos, sem intervenções de melhorias, a realidade na maioria do país. O segundo é o padrão mínimo: nivelamento adequado, sem buracos, mas sem projeto de drenagem para escoamento de água. A durabilidade é de um ano e demanda manutenções anuais. O terceiro é o padrão superior: projeto técnico completo, com nivelamento adequado, ausência de buracos e sistema de drenagem. A durabilidade média é de sete anos, com manutenções anuais de menor complexidade.
O custo de manutenção no padrão mínimo é de R$ 35 mil por quilômetro ao ano. No padrão superior, sobe para R$ 131 mil por quilômetro ao ano. Mas a conta compensa. A melhoria de 101 mil quilômetros de vias consideradas em estado ruim para o padrão superior demandaria R$ 12,6 bilhões de investimento inicial. Porém, como esses projetos são mais duradouros, a manutenção anual cairia para R$ 2,79 bilhões.
O estudo apresenta diversos cenários de investimento. Para resolver o problema de todas as estradas vicinais — terciárias e não classificadas — nas regiões altamente prioritárias, passando para um padrão mínimo, seriam necessários R$ 22,7 bilhões anuais. Para resolver o problema do Brasil como um todo, todas as estradas vicinais em padrão mínimo, o investimento subiria para R$ 43,5 bilhões anuais.
“Nós desenvolvemos uma ferramenta direcionadora de decisões públicas para as vicinais”, explica Péra. O material apresenta análises detalhadas por estado, mostrando a distribuição espacial das vias, as regiões consideradas prioritárias e os custos de investimento específicos para cada localidade. “Muitas vezes não dá para resolver o problema do Brasil, mas nós temos os caminhos, conhecemos os caminhos de onde priorizar esses investimentos.”
Entre as recomendações, a CNA defende a aprovação do Projeto de Lei nº 1146/2021, que institui a Política Nacional de Mobilidade Rural e Apoio à Produção — Estradas da Produção Brasileira. O estudo também propõe a implementação efetiva do Programa Nacional de Estradas Vicinais (Proner), coordenado pelo Ministério da Agricultura, que tem entre seus objetivos a manutenção dessas vias.
Outras sugestões incluem melhorias na logística de distribuição de materiais — especialmente cascalho, brita e material de construção —, capacitação de mão de obra especializada, formação de equipes técnicas para gestão e manutenção de estradas vicinais, e criação de canais diretos de comunicação com produtores rurais para facilitar o registro e o atendimento de demandas.
O levantamento também identificou obstáculos que dificultam investimentos e melhorias nessas vias: orçamento público limitado, extensão elevada da malha e falta de mão de obra técnica qualificada para execução das obras. São desafios conhecidos, mas agora dimensionados com precisão.
“E aí, queremos atolar mais o Brasil dentro literalmente dessas estradas vicinais ou vamos avançar no caminho da competitividade?”, provoca Péra. “Não dá mais para negligenciar o problema das estradas vicinais. Tudo que a gente produz passa pelas estradas vicinais. Tudo que a gente usa no campo, que chega lá no campo, passa pelas estradas vicinais. Nós temos volumes de projeção de crescimento da agropecuária como um todo bastante significativos para os próximos dez anos. Se nada for feito, a gente vai ficar cada vez mais deficitário em termos de infraestrutura” (Forbes)