Por Jaques Paes
O que está em jogo não é a reputação de Belém, que segue alheia, nem a imagem já carcomida do Brasil, mas a essência da conferência
Nada mais simbólico do que sediar uma conferência climática global numa cidade onde o esgoto corre a céu aberto e a floresta dá lugar ao asfalto. A COP30 em Belém não é uma resposta à crise climática, mas uma encenação cuidadosa e impressionista. Enquanto se “discute o futuro”, o presente é assolado com retórica ambiental e tapumes institucionais. É como convidar o Corpo de Bombeiros para um coquetel, no meio do incêndio.
Realizar a COP30 em Belém não é apenas um desafio logístico, é uma contradição moral, política e estrutural. Mais do que quartos em hotéis, falta coerência entre o discurso e a prática ambiental, especialmente num Estado com alguns dos piores índices sociais do Brasil e dono de um dos maiores patrimônios ambientais do planeta. Uma cidade quente, esburacada, com ruas frequentemente inundadas por esgoto, como descreveu a imprensa internacional — não sem razão.
Enquanto o governo do Pará contrata navios de cruzeiro — símbolo flutuante de suntuosidade — e fecha acordos com hotéis de luxo para acomodar participantes temporários, Belém segue com déficits estruturais profundos. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (Snis) compilados pela plataforma Municípios e Saneamento, apenas 8,7% da população do Estado tem acesso efetivo à rede de esgotamento sanitário, e na capital essa cobertura é de 19,9%, bem abaixo da média nacional.
Ao aceitar que mais de 80% da população viva sem tratamento sanitário adequado, aceita-se também a violação direta dos princípios que a própria ONU defende, como o acesso universal à água potável e ao saneamento. E, sob o pretexto de “melhoria urbana” para receber a COP30, o Estado promove o desmatamento de áreas protegidas — como na construção de uma avenida de 13,4 km dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA), já responsável pela perda de vegetação equivalente a 107 campos de futebol.
No próprio Relatório de Impacto Ambiental, o projeto é descrito como capaz de causar interferência no curso natural dos corpos d’água, aumento da impermeabilização do solo, perda de biodiversidade e pressão sobre comunidades tradicionais. Ainda assim, com medidas de mitigação genéricas e sem garantias operacionais, o documento conclui que tais impactos “não inviabilizam a implantação”.
O Plano de Controle Ambiental não traz soluções efetivas para os principais impactos apontados nem mecanismos concretos de compensação. Soma-se a isso a ausência de consulta prévia às comunidades ribeirinhas afetadas, em descumprimento à legislação ambiental e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Sintomático que o Projeto de Lei 2.159/2021 — o chamado PL da Devastação — tenha sido defendido sob o argumento de modernizar e agilizar o licenciamento ambiental, prometendo conciliar desenvolvimento com proteção socioambiental. A distopia se revela quando parte dos que combateram sua aprovação tornam-se entusiastas das obras da COP30, que materializam justamente o que antes denunciavam: desmatamento em áreas protegidas, ausência de consulta às comunidades tradicionais e mitigação meramente formal.
Entre licenças por adesão e autorizações simplificadas para projetos “estratégicos”, abriu-se caminho para um avanço que atropela as mesmas garantias que esses atores diziam defender. O ruído que marcou sua discussão cedeu lugar a uma execução silenciosa, institucionalizada e disfarçada de progresso.
Tudo isso às vésperas de um evento cujo objetivo central é enfrentar a emergência climática — ironia digna de tragicomédia amazônica. A expansão urbana atropela legislações ambientais e marginaliza comunidades tradicionais; a ação contra a mudança global do clima se esvazia quando a floresta cede lugar ao asfalto em nome de uma mobilidade que não atende nem aos moradores da cidade. É a Agenda 2030 da ONU perdendo sentido diante de decisões que ignoram fatos.
A tragicomédia avança para o ato dois: um Estado que não garante o básico ergue um circo diplomático no coração da Amazônia, onde ostentação e vulnerabilidade, camarote e porão, dividem o mesmo picadeiro. O que está em jogo não é a reputação de Belém, que segue alheia, nem a imagem já carcomida do Brasil, mas a essência da conferência.
Até ontem, não se combatia a emergência climática derrubando floresta, impactando comunidades e erguendo obras que servem mais a interesses imediatos do que ao futuro comum. A COP-30, vendida como marco, é a floresta reduzida a cenário de uma narrativa sustentável incoerente. E os papéis já estão definidos: protagonistas e coadjuvantes — entre o luxo flutuante e o lixo sufocante.
A ironia é evidente: enquanto a ONU adverte para os riscos da manipulação da verdade no debate ambiental, o que se vê são ações camufladas de compromisso sustentável que, na prática, aprofundam danos ao meio ambiente. A linha entre desinformação e maquiagem se dilui quando o discurso omite impactos ou terceiriza responsabilidades em nome de um “bem maior”.
O resultado é uma encenação que abafa vozes contrárias e dissolve a fronteira da desinformação. No fim, o problema não é a falta de hotel ou de logística, mas o que vem muito antes disso (Jaques Paes Consultor, especialista em Gestão, é professor do MBA de ESG e Sustentabilidade da FGV; Estadão)