Norte e Nordeste são as regiões mais penalizadas pela sobretaxa de 50%.
As tarifas impostas por Donald Trump sobre produtos importados do Brasil afetam ao menos a metade das vendas aos Estados Unidos em 22 estados brasileiros, com impacto superior a 95% em oito deles, segundo estimativa da Folha a partir de dados do Mdic (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços) relativos ao comércio de 2024.
Desde a quarta-feira (6) vigora o decreto da Casa Branca que adiciona uma tarifa de 40% sobre os produtos importados do Brasil, elevando o valor total da sobretaxa ao país em 50%. Mesmo com uma lista de 694 isenções, estados como Tocantins, Alagoas, Acre, Amapá, Ceará, Rondônia, Paraíba e Paraná passam a ter de 95% a 100% de suas vendas aos Estados Unidos sobretaxadas.
O percentual fica abaixo de 50% somente em Mato Grosso do Sul (49,6%), no Pará (44%), no Rio de Janeiro (32%), em Sergipe (24%) e no Maranhão (9%).
Em valores absolutos, as tarifas de Trump sobre o total de exportações têm mais peso no Sudeste, já que a região é a maior exportadora. Ao considerar outros pontos, como a dependência dos americanos em alguns segmentos exportadores, as especificidades das cadeias afetadas e a lista de segmentos isentos, outras regiões sentirão efeitos mais severos, como Nordeste e Sul.
Estudo recente do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas) indica que Sudeste e Centro-Oeste conseguem amortecer de forma significativa os efeitos do tarifaço, em parte porque foram beneficiados com a lista de isenções.
Em 2024, São Paulo vendeu US$ 13 bilhões aos Estados Unidos, e cerca de 56% dessas vendas ficam agora sobretaxadas, o que corresponde a US$ 7,5 bilhões. Trump isentou produtos de alto valor agregado e que estão entre os mais comercializados pelo estado, como aviões, petróleo e também o suco de laranja, suavizando o prejuízo geral.
Os EUA são o principal parceiro internacional de São Paulo, respondendo por 19% das vendas, à frente de China, com 12%, e Argentina, com 9%.
Entre os estados do Sudeste, Minas Gerais apresenta a maior fatia de seu comércio sobretaxada, com 63%. O estado comercializou US$ 4,6 bilhões aos americanos no ano passado, e agora US$ 2,9 bilhões desse montante têm incidência de 50%. O principal produto é o café, com US$ 1,5 bilhão do valor. O Brasil é o principal parceiro dos Estados Unidos para esse produto.
Vários estados do Nordeste e do Norte, por outro lado, têm quase a totalidade das exportações aos EUA prejudicada com o tarifaço, sem alívio com a lista de isenções. Tocantins, por exemplo, exportou US$ 74 milhões para os americanos no último ano e, dentre os produtos enviados, todos estão em classes sobretaxadas –carne bovina, peptona, sebo animal, ossos, gelatina e derivados, para citar os de maior peso.
No geral, Tocantins não depende tanto dos Estados Unidos na pauta exportadora, o que não minimiza o impacto em setores específicos e em microrregiões. O principal aliado externo do estado é a China, responsável por 47% das exportações no último ano. Os americanos aparecem em sexto lugar.
O Ceará vive um cenário mais delicado porque a dependência geral das compras americanas é maior. A sobretaxa de Trump recai sobre 98,6% dos segmentos de produtos cearenses vendidos ao país, e quase metade (45%) de tudo que é direcionado para fora vai para lá. Estão sobretaxados ferro e aço, frutas, peixes, calçados e mel.
O economista Flávio Barreto, que conduziu com Thiago de Araújo Freitas o estudo da FGV Ibre sobre o impacto das tarifas nas regiões, destaca que, mesmo que a participação americana possa ser pequena nas exportações gerais de alguns estados, Norte e Nordeste têm uma pauta exportadora concentrada em bens de baixo valor agregado e com alta intensidade de trabalho, além de não terem sido poupados na lista de isenções, como foi o Sudeste.
“No Nordeste, grande parte dos produtos –frutas, pescados, calçados, vestuário– será taxada. No geral, são itens de baixo valor agregado, com mão de obra pouco qualificada, grande parte é perecível. Imagine, por exemplo, os produtores de mel no Piauí, onde grande parte da produção é feita por cooperativas e pequenos produtores”, avalia. Ficam sensíveis a forte impacto econômico Bahia, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte, com presença de polos agroindustriais voltados à exportação.
Cenário semelhante ocorre no Sul. Na média regional, 88% das exportações têm tarifa plena. O Paraná é o estado com maior taxação sobre o valor exportado, cerca de 96% do que é vendido aos EUA, US$ 1,5 bilhão. No Sul, as tarifas de Trump atingem, principalmente, o segmento de madeira e móveis (a maior parte do que o Brasil vende vem da região) e de calçados e têxteis.
Para Marcos Lélis, professor de economia da Unisinos e coordenador do grupo de pesquisa e competitividade e economia internacional da universidade, o efeito do tarifaço sobre exportações e, por fim, sobre o PIB dos estados, pode ser numericamente baixo. O ponto de atenção deve estar nos setores econômicos e nas microrregiões muito expostas aos Estados Unidos, que podem ser estrangulados.
Ele estima que, no Rio Grande do Sul, maior exportador em termos absolutos do Sul, a sobretaxa em 85% do que é vendido aos americanos represente cerca de 7% das exportações estaduais, o que pode gerar impacto de 0,9% a 1,1% do PIB gaúcho em 12 meses.
“Quando olhamos a nível global, parece baixo, mas o impacto setorial e regional é altíssimo. Fumo, armas e calçados representam quase 35% do que foi sobretaxado, e tanto armas e munições como o setor de calçados estão na mesma região, em São Leopoldo, e quase tudo é exportado aos Estados Unidos”, diz.
Um dos exemplos é a fábrica da Taurus, na cidade de São Leopoldo, que exporta quase toda a produção de armas para os Estados Unidos, responsável por 80% do faturamento da empresa.
“Se não houver uma solução, uma negociação, a curva vai ficando mais longa e afetando a cadeia de pequenos fornecedores do entorno dos setores afetados. A melhor forma de o governo ajudar, na minha opinião, não é setorial, mas concentrada, olhando empresa por empresa”, afirma. Ele diz isso porque há vários produtos isentos de tarifas dentro de um mesmo setor exportador.
No Centro-Oeste, a sobretaxa tem incidência menor sobre a pauta exportadora dos estados e fere setores que não dependem exclusivamente dos Estados Unidos. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, o tarifaço atinge mais ou menos US$ 332 milhões da exportação (em torno de 50%), sendo 87% disso ligado a carnes e couro. A China, no entanto, responde por 32,7% das vendas do estado.
A análise da Folha considerou a classificação do Sistema Harmonizado de seis dígitos, um código de mercadorias universal para classificar produtos que circulam no comércio internacional, criado pela Organização Mundial das Alfândegas. Esse código abarca segmentos econômicos bem específicos, mas não cada item.
Assim, o levantamento é uma estimativa, uma vez que dentro de uma mesma categoria pode haver produtos isentos e taxados. Segundo o Mdic, não há uma tabela de conversão que compatibilize as especificações de comércio norte-americano (HTSUS) e brasileiro (NCM) (Folha)
Como estão se virando 5 produtores afetados pelo tarifaço
Exportadores de peixes, couro, madeira, café e produtos eletrônicos tentam ajustar produção e aguardam socorro.
À frente de uma indústria com 1.500 empregados diretos e indiretos, a Atum do Brasil, o empresário Mauro Lucio Peçanha afirma que o tarifaço dos Estados Unidos causou “muita preocupação e dor”.
Sediada em Itapemirim, no Espírito Santo (a 105 km de Vitória), a empresa envia de 70% a 80% da produção de pescados para os Estados Unidos, receita agora ameaçada pela sobretaxa de 50%. Peçanha ainda não tem clareza de como poderá enfrentar o cenário.
“Teve um problema sério com a Covid, mas não se compara com o que está acontecendo hoje. Naquela época, a gente acabou se reinventando, e a coisa voltou a funcionar. Hoje é uma questão de entrega”, diz.
“Sem o consumidor, o que você vai fazer com o produto? É uma situação totalmente inusitada. Peço a Deus para nunca mais passar pelo que estou passando hoje, e gostaria que ninguém passasse. A verdade é essa”, acrescenta.
Peçanha pede urgência em medidas de auxílio dos governos federal e estadual, além de defender a tentativa de avanço nas negociações comerciais com os americanos.
Ele afirma que a Atum do Brasil buscou abrir espaço no mercado interno nas últimas semanas, mas avalia que o país não consegue absorver toda a demanda que iria para os Estados Unidos.
PRODUTOR DE COURO TEME QUE FALTE OXIGÊNIO PARA O SETOR
A preocupação com o cenário não é um sentimento só de Peçanha. Empresários de outros setores ouvidos pela Folha também estão apreensivos com a entrada em vigor do tarifaço de Donald Trump na quarta-feira (6).
Esses exportadores lidam com a frustração de não escapar da sobretaxa de 50%, tentam ajustar a produção ao atual momento e aguardam socorro dos governos.
“A gente não sabe para onde ir neste momento, porque não há clareza do que pode trazer o retorno da atividade”, afirma Cezar Müller, diretor da A.P. Müller, indústria do setor coureiro no município gaúcho de Portão (a 50 km de Porto Alegre).
A empresa gera cerca de 50 empregos, e a produção é voltada para exportações. O couro que passa pela fábrica é usado em diferentes artefatos, como bolsas, cintos e carteiras.
De acordo com Müller, a participação das vendas para os Estados Unidos vinha em crescimento antes do tarifaço, alcançando 90% dos embarques neste ano.
Com a paralisação do mercado americano, a empresa decidiu reduzir jornadas de trabalho e dar férias coletivas.
Enquanto o impasse com os Estados Unidos não é resolvido, Müller diz que o governo federal deveria criar um auxílio para “compensar” o tarifaço.
“Muitas empresas talvez não tenham oxigênio até que eventualmente saia algum tipo negociação [entre os países]. O mercado de couro tem muita fidelidade, projetos integrados. Buscar outros mercados pode levar até um ano. Não é como vender commodities.”
FÁBRICA DE PRODUTOS ELETRÔNICOS GAÚCHA LOTOU ESTOQUE NOS EUA
O presidente do conselho de administração da empresa gaúcha de equipamentos eletrônicos Novus, Aderbal Lima, diz que não havia muito a fazer a partir de quarta, quando entrou em vigor a sobretaxa de 50%.
Por isso, a fabricante procurou se antecipar durante o mês de julho. Antes de o tarifaço ser implementado, focou a produção no mercado americano e conseguiu ampliar o volume de cargas enviadas de avião para os clientes locais.
As mercadorias devem abastecer os Estados Unidos por três meses. Isso foi possível porque a Novus tem unidade de estoque no país governado por Trump.
“É um paliativo”, diz Lima. “Deu tudo certo, a mercadoria está lá, mas daqui para frente é um pavor.”
A fábrica da Novus fica em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, onde gera cerca de 170 empregos. O mercado americano representa em torno de 15% do faturamento com exportações e 8% do total da empresa, de acordo com Lima.
Ele afirma que, em caso de manutenção da sobretaxa de 50% a produtos brasileiros, a Novus poderá instalar uma pequena base de montagem nos Estados Unidos.
“Muitos dos chips sofisticados que usamos são americanos. Não são chineses”, diz. “Agora, qualquer parte que a gente tire de Canoas pioraria a otimização aqui. Se transferir 10% da produção ou 20% para lá, vou ter [cerca de] 80% [da capacidade] aqui, mas com o mesmo custo. Isso não é bom.”
EM CIDADE DE INDÚSTRIA DE PORTAS, ATÉ PADARIA SERÁ AFETADA
No município paranaense de Bituruna (a 320 km de Curitiba), a indústria de portas, molduras e compensados Randa decidiu frear a produção em meio à insegurança do tarifaço.
Com o cancelamento de pedidos de clientes americanos, a empresa deu férias coletivas e está operando com 50% de sua capacidade, segundo o CEO da companhia, Guilherme Ranssolin.
Ele é mais um dos nomes que pedem urgência em medidas de socorro para indústrias. Os Estados Unidos representam em torno de 55% do faturamento da Randa.
De acordo com o CEO, a empresa gera cerca de 800 postos de trabalho em Bituruna, cuja população foi estimada em 15,7 mil habitantes em 2024. Uma das plantas da companhia é moldada para atender os americanos.
No momento, não há como falar em plano B para substituir os compradores dos Estados Unidos, diz Ranssolin.
“Vai afetar muito nossa cidade e o setor madeireiro. Vai afetar também o supermercado, a padaria, o borracheiro e o posto de gasolina. A corrente se inicia por nós e passa para outras pessoas. É muito grave, muito crítico.”
PRODUTORA TEME POR DESTINO DE 500 SACAS DE CAFÉ GOURMET
A produtora de café Raquel Meirelles, que tem plantações no norte e no sul de Minas Gerais, afirma que o setor esperava ser incluído entre as isenções à sobretaxa americana até a última quarta, mas isso não aconteceu.
“Agora que a gente começou a ter conversas mais concretas, porque até então estava muito confiante que essa tarifa para o café não ia se manter”, diz, ao lembrar que os Estados Unidos não possuem produção suficiente para abastecer o mercado interno.
Entre as alternativas avaliadas está o envio de parte das mercadorias para a Colômbia, de onde o café seria embarcado para os Estados Unidos.
“Mas não sei como vai ser a negociação, se o cliente vai assumir essa despesa maior de frete, que costuma ser um custo de quem compra”, afirma a produtora.
Das 8.000 sacas que ela espera produzir nesta safra, 2.000 são de cafés especiais –a categoria mais gourmet do setor, com parâmetros mínimos de aroma e sabor. Desse montante, 500 sacas teriam como destino os Estados Unidos.
Apesar de possuir clientes em outros países, Meirelles afirma que o setor de café especial envolve um relacionamento que é construído ao longo dos anos e que não consegue escoar a produção de uma hora para outra.
O mesmo problema seria enfrentado pelo comprador americano no momento de achar um fornecedor. “Eles [importadores] me sinalizaram que vão continuar comprando os nossos cafés, mas talvez em quantidade menor. E até clientes que estavam com viagem marcada para o Brasil já desistiram de vir [por causa do tarifaço]”, diz.
O diretor-executivo da Associação Brasileira de Cafés Especiais, Vinicius Estrela, afirma que operadores têm procurado produtores e cooperativas para renegociar os contratos futuros. O objetivo é repartir o custo da sobretaxa, para que não recaia somente sobre o consumidor americano (Folha)