Reforma tributária: Quem ganha e quem perde no texto apresentado na Câmara?

Entenda o que muda para o setor de alimentos, bebidas, ‘bets’ e veículos; texto ainda deve passar por mudanças até a votação em plenário, prevista para antes do recesso parlamentar.

O grupo de trabalho responsável por regulamentar a reforma tributária na Câmara dos Deputados apresentou nesta quinta-feira, 4, o primeiro relatório da proposta.

Esse primeiro projeto traz o coração do novo sistema de impostos sobre consumo, com as regras para o funcionamento do Imposto sobre Valor Agregado, o IVA – que unificará cinco tributos existentes hoje. A previsão é de que o relatório seja votado no plenário da Câmara antes do recesso parlamentar, que começa em 18 de julho.

Os deputados que integram o grupo de trabalho já sinalizaram, no entanto, que o texto ainda pode passar por mudanças e que alguns pontos mais controversos serão discutidos com as lideranças partidárias – o que deve impulsionar os lobbies dos setores que não foram atendidos no parecer preliminar nos próximos dias.

“Há ainda pontos de divergências no texto, esses pontos serão discutidos nas bancadas”, disse Luiz Gastão (PSD-CE). “Qualquer situação diferenciada para algum setor vai impactar a alíquota de referência (do IVA), de 26,5%. Mas acreditamos que conseguimos reduzir essa alíquota pelas melhorias que fizemos no texto”, afirmou.

Setor de alimentos

A indústria de alimentos e o agronegócio vinham pressionando pela entrada das proteínas animais na cesta básica com imposto zero, sobretudo após as falas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em defesa da isenção das carnes mais populares.

O parecer dos deputados, no entanto, deixou as carnes de fora, como previa o texto enviado pela equipe econômica. O temor é o impacto na alíquota geral do novo Imposto sobre Valor Agregado. Cálculos do Banco Mundial e do Ministério da Fazenda apontam que a inclusão das carnes na cesta elevaria a alíquota média em 0,57 ponto porcentual, fazendo com que o IVA subisse para 27,1%, como mostrou o Estadão.

Pelo texto da Fazenda, as proteínas animais estão na alíquota reduzida, com desconto de 60% em relação à padrão. Já os itens considerados de luxo, como salmão, ovas e foie gras, pagarão a alíquota cheia, projetada pela Fazenda em 26,5%.

A Associação Brasileira dos Supermercados (Abras), que vinha trabalhando pela inclusão das carnes na cesta básica isenta, emitiu uma nota após a divulgação do parecer, informando estar “otimista com a possibilidade de alteração do relatório até a próxima semana, quando deve ser votado pelos deputados”.

“O acesso a carnes pela população mais pobre foi objeto de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que manifestou ontem seu desejo de inclusão das proteínas na cesta básica. Parlamentares do Grupo de Trabalho também já declararam seu apoio à proposta”, diz a nota da Abras.

“Caso não haja esse avanço, haverá aumento de preços das carnes, sobre as quais a incidência de tributos atualmente é menor do que o projetado após a implementação do IVA”, acrescenta.

‘Bets’ e jogos de azar

O grupo de trabalho decidiu incluir os jogos de azar – físicos (como loterias) e digitais (como as apostas esportivas, as “bets” – no Imposto Seletivo. Esse tributo, chamado “imposto do pecado”, vai incidir sobre itens considerados nocivos à saúde e ao meio ambiente.

“Os jogos de azar são prejudiciais à saúde e deveriam entrar na lista de produtos a serem tributados”, afirmou o deputado Hildo Rocha (MDB-MA), um dos integrantes do grupo de trabalho.

A Associação Brasileira de Fantasy Sport (ABFS) criticou a inclusão dos chamados “fantasy games” no Seletivo, argumentando que a atividade esportiva eletrônica estimula o desenvolvimento de habilidades mentais e de raciocínio lógico e, portanto, não se encaixaria no conceito do chamado ‘imposto do pecado’

O setor argumenta que a lei de tributação das “bets”, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula no ano passado, diferencia a atividade de Fantasy Sport – esporte eletrônico em que o competidor torna-se técnico de um time virtual – de loterias, apostas, promoções comerciais e concursos de prognósticos, e a classifica como modalidade esportiva.

Setor de bebidas

O parecer do grupo de trabalho manteve as bebidas alcoólicas no Imposto Seletivo. Pelo texto, a taxação será proporcional à quantidade de álcool, num modelo misto: uma taxação em reais, de acordo com o teor alcoólico e o tamanho do recipiente; e uma alíquota em porcentual, que incidiria sobre o preço do produto.

As cervejarias, portanto, se articulam para tentar garantir a manutenção da sua carga tributária – ou seja, não querem que o Seletivo onere o setor, e vão brigar por isso até a votação da proposta no plenário da Câmara.

A Associação Brasileira de Cerveja Artesanal (Abracerva) lançou uma petição contra o Seletivo. A iniciativa usa o slogan ‘Cerveja não é pecado’ para recolher assinaturas de internautas. Foto  Reprodução

Elas pleiteiam, ainda, a isenção aos fabricantes enquadrados no Simples Nacional, o que beneficiaria os pequenos produtores de todas as bebidas alcoólicas. No caso das cervejarias, eles são a maior parte do mercado: 83%, segundo dados do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv).

“Vamos trabalhar para sensibilizar os líderes da importância desses pontos. Ainda tem muitas casas para a gente percorrer no tabuleiro dessa reforma. Hoje foi só mais uma. Estamos otimistas”, afirma Márcio Maciel, presidente do Sindicerv.

Já o setor de destilados, como vodka e cachaça, irá tentar reverter a taxação de acordo com a quantidade de álcool. Com a frase “Álcool é álcool”, que também virou hashtag nas redes sociais, os fabricantes de destilados defendem alíquotas homogêneas do Seletivo.

Setor automotivo

O relatório manteve os veículos no “imposto do pecado” – o que representa uma derrota para a indústria automobilística. O parecer incluiu ainda carros 100% elétricos, como antecipou o Estadão, uma vez que o texto da Fazenda taxava apenas veículos a combustão e híbridos.

O presidente da Associação Brasileira dos Veículos Elétricos (ABVE), Ricardo Bastos, afirma que o setor é contra a inclusão de qualquer automóvel na lista de produtos passíveis da tributação do Seletivo, não apenas os elétricos. “Isonomia não é tributar todos os veículos, mas retirar todo mundo do Seletivo”, disse ele ao Estadão.

Bastos afirma que a tributação sobre automóveis já é elevada no Brasil, ao redor de 34%, acima do praticado em países como os Estados Unidos. Com a reforma, a tributação vai partir da alíquota plena, estimada em 26,5%, e será acrescida pelo Seletivo.

“Isso deve fazer com que a tributação volte ao montante de 34% – e, assim, não haverá uma mudança de carga tributária. O que nós precisamos é aumentar a escala (de vendas) para a gente aumentar a competitividade da indústria”, afirma.

A crítica é semelhante à feita pela Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos (Anfavea), que argumenta que a tributação extra do Seletivo vai dificultar o acesso da população a carros novos – o que vai atrasar a renovação da frota por veículos menos poluentes.

Construção civil

O grupo de trabalho que prepara a regulamentação da reforma tributária na Câmara dos Deputados decidiu reduzir a taxação sobre o setor de construção civil e imobiliário. As alíquotas cobradas de incorporadoras e construtoras terão uma redução de 40% em relação à tributação de referência, estimada em 26,5% pelo Ministério da Fazenda.

Já nas operações de aluguel, cessão onerosa e arrendamento – sempre entre pessoas jurídicas – haverá uma redução de 60% em relação à alíquota padrão. Pela proposta original elaborada pelo Ministério da Fazenda, a redução para ambas as modalidades era de 20%.

Os deputados também decidiram incluir a construção civil dentro do regime diferenciado do setor imobiliário, o que não havia sido previsto pelo Ministério da Fazenda. As medidas atenderam ao segmento produtivo, que alegou que a tributação, como proposta pelo Executivo, iria elevar o preço dos imóveis.

Absorventes e Viagra

Os deputados zeraram a alíquota de produtos relacionados a cuidados com a saúde menstrual, como absorventes. O projeto enviado pelo governo previa apenas uma redução de 60% do tributo. “Esse grupo de trabalho teve a coragem de ouvir as mulheres e de entender que as meninas pobres gastam R$ 60 na dignidade menstrual”, disse o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG).

Já o Viagra (citrato de sildenafila), usado para o tratamento de disfunção erétil e da hipertensão pulmonar, por sua vez, saiu da lista de isentos migrou para a alíquota reduzida, com desconto de 60%. ”Zeramos a alíquota para a dignidade menstrual e aumentamos a do Viagra”, disse Reginaldo.

‘Nanoempreendedor’

O relatório da regulamentação da tributária abre espaço para criar a figura do nano empreendedor, que terá tratamento diferenciado na comparação ao Microempreendedor Individual (MEI). “Foi uma ousadia do grupo de trabalho entender que o Brasil é desigual, com 120 milhões de brasileiros que fazem venda para complemento de renda. E não podemos tributar da mesma forma”, disse Reginaldo Lopes.

O texto estabelece que o nano empreendedor é aquele que tem receita inferior a R$ 40.500 anuais. Quem cumprir esse critério não será contribuinte do IBS e da CBS, a não ser que faça essa opção e não haverá contribuição previdenciária. O MEI paga R$ 70 de imposto mensal.

Devolução de créditos para empresas

Os integrantes do GT também reduziram de 60 para 30 dias o prazo para o ressarcimento de créditos a empresas que não conseguirem abater todo o tributo acumulado ao longo da cadeia produtiva.

O prazo encurtado, que era um pleito da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Associação Brasileira de Companhias Abertas (Abrasca), deverá valer apenas para empresas enquadradas em programas de conformidade dos fiscos.

Bares e restaurantes

O grupo de trabalho atendeu aos pleitos do setor de bares e restaurantes e alterou as regras desse regime específico. A nova versão do texto prevê que os estabelecimentos poderão se apropriar de créditos do IVA nas suas aquisições, os quais serão usados para abater futuros tributos.

Na versão original do projeto, enviada pelo Ministério da Fazenda, o regime era totalmente cumulativo, sob a justificativa de evitar a desoneração, ainda que indireta, de bebidas alcoólicas – itens que estão sujeitos ao Imposto Seletivo.

Outra demanda acolhida pelos parlamentares diz respeito ao delivery, que foi excluído da base de cálculo do IVA. Isso significa que os valores não repassados aos bares e restaurantes pelo serviço de entrega não serão mais computados para fins de incidência do imposto.

Por exemplo: o consumidor paga R$ 100 por uma refeição solicitada por meio de aplicativo. Desse valor, R$ 75 é devido ao restaurante e R$ 25 à plataforma. Com a nova redação, o estabelecimento pagará o IVA sobre os R$ 75 e não mais sobre os R$ 100, como acontece hoje.

Isso não significa, porém, que essa redução do imposto devido será necessariamente repassada ao consumidor. “É claro que algumas empresas, com isso, vão melhorar os seus resultados. A empresa que está operando com prejuízo, se tiver esse alívio, não vai repassar, vai usar para reduzir o prejuízo”, afirma Paulo Solmucci, presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel).

Armas

Havia uma expectativa de que as armas pudessem entrar na lista de alvos do “imposto do pecado”, mas elas foram poupadas neste primeiro relatório, tal qual o texto enviado pela Fazenda ao Congresso.

“Nós perdemos o debate na PEC (para inclusão das armas na sobretaxa). Então, achamos que esse é um debate que cabe às lideranças partidárias”, afirmou o deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que integra o grupo de trabalho. Durante a votação da PEC da reforma tributária na Câmara, a taxação de armas foi retirada por meio de uma emenda no último minuto.

O vice-presidente Geraldo Alckmin chamou de “equívoco” deixar as armas fora do Seletivo. “É muito melhor desonerar comida. Está comprovado que, quanto mais arma tem, mais homicídio tem”, afirmou (Estadão)

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