Marcos Jank, do Insper Global Agribusiness Center, diz que os países não querem depender de alimentos importados e que o Brasil vive em um mundo de incertezas sem precedentes.
“A gestão de risco nunca foi tão importante quanto hoje”, afirma Marcos Jank, um dos maiores especialistas em comércio agrícola do país, com 40 anos de experiência no setor, hoje coordenador do Insper Global Agribusiness Center. Para ele, o agronegócio brasileiro precisa abandonar ilusões e se preparar para um mundo que pode “arrebentar com os mercados” a qualquer momento. As regras que garantiram décadas de crescimento do comércio agrícola global estão sendo reescritas em tempo real, e o Brasil precisa se adaptar rapidamente para não ser apenas um espectador dessa transformação, mas um ator capaz de proteger seus interesses em um mundo cada vez mais imprevisível e fragmentado.
A principal ilusão, segundo Jank, está no próprio discurso do setor. “A gente parte de uma ideia que o mundo quer o Brasil e precisa do Brasil para se alimentar. Mas isso não é verdade. A verdade é que os países não querem depender de comida importada”, diz ele. “Segurança alimentar é um assunto muito crítico, principalmente em países que têm mais de um bilhão de habitantes.”
Essa realidade pauta a estratégia chinesa, maior parceiro comercial do agronegócio brasileiro. “A China, se pudesse, faria toda a comida que ela precisa. O problema é que ela tem uma restrição de 120 milhões de hectares agrícolas”, explica Jank. Mesmo assim, o país asiático mantém autossuficiência em arroz e trigo, alcançou crescimento impressionante de produtividade no milho e escolheu abrir mão apenas da soja. “E mesmo assim, sempre com uma preocupação e com um olhar para a segurança estratégica alimentar. Eles querem encontrar outros fornecedores.”
A nova desordem internacional
O cenário se complica ainda mais porque o mundo vive o que Jank chama de “nova desordem internacional”. As instituições criadas no pós-guerra, que garantiram décadas de crescimento do comércio global, estão em colapso. “É como se fosse um jogo de futebol que, de repente, não tem mais regra, não tem mais juiz, não tem mais placar. Qual é o jogo de futebol que vai funcionar sem regra, sem juiz e sem placar?”
Para ilustrar a dimensão da mudança, Jank usa uma analogia: “É como se durante muitos anos o nosso avião fosse pilotado por um piloto que está cuidando de eficiência. De repente, quem assume o volante é o copiloto que está cuidando de geopolítica. Ou seja, não é mais eficiência, que é o nome do jogo, passa a ser geopolítica. E na geopolítica, você está num jogo entre amigos e inimigos.”
A Organização Mundial do Comércio não tem juízes no órgão de apelação desde o governo Obama. A ONU não resolve guerras. A Organização Mundial de Saúde não conseguiu coordenar respostas eficazes na pandemia. “As organizações já não servem mais”, diz Jank. “Então, não dá para colocar tudo na conta do Trump”, se referindo às atuais políticas do tarifaço geral e irrestrito no presidente dos EUA.
Donald Trump acelerou drasticamente esse processo. “O que o Trump fez, na minha visão, foi botar um patamar nisso”, avalia. O presidente americano inaugurou uma forma completamente nova de conduzir negociações comerciais: “Conversas diretas, assimétricas, transacionais, com o setor privado, com as associações, até ignorando os próprios governos, em muitos casos.”
Para ele, o resultado prático pode ser visto no caso europeu. “A Europa pagava 3% para entrar nos EUA. Trump ameaçou 30%. E depois a Europa comemorou que conseguiu 15%. A proteção para os produtos da Europa aumentou cinco vezes e a Europa comemorou”, diz Jank, demonstrando como a nova dinâmica distorce até mesmo a percepção do que constitui sucesso em negociações comerciais.
Para o Brasil, a situação é particularmente complexa porque Trump misturou questões comerciais com pressões políticas e geopolíticas. “No Brasil, ele misturou duas coisas complicadas. Uma delas é o governo Bolsonaro e a questão do STF, tudo na mesma pauta”, afirma. “Mas tem um outro assunto também, que eu diria é até mais importante, que é a China.”
A presença chinesa no Brasil, simbolizada pela participação no BRICS, se tornou um ponto de tensão com Washington. “O BRICS enquanto bloco não é nada. O BRICS não é um bloco. O BRICS é um agrupamento político de países muito heterogêneos, mas que foram colocados juntos por conta da China”, analisa Jank. “E essa presença da China na América do Sul, o discurso que falou de desdolarização, de uma eventual moeda única, tudo isso entrou na cabeça do Trump como sendo algo que precisava ser eliminado.”
A ironia, segundo o especialista, é que houve uma completa inversão geopolítica na região. “No governo anterior do Bolsonaro, o Brasil estava ligado aos Estados Unidos e a Argentina estava ligada à China. E agora inverteu as posições e a Argentina está conseguindo uma série de benesses, inclusive no agro, porque se aproximou dos Estados Unidos.”
Jank é categórico sobre o que deve orientar o setor do agro neste momento.
“O grande recado para quem é produtor é o seguinte: gestão de risco nunca foi tão importante quanto hoje. É importante crescer, aumentar a rentabilidade, organizar melhor a propriedade rural, mas você tem que gerir riscos e ter na cabeça que a geopolítica pode arrebentar com seus mercados.”
A lista de eventos imprevistos dos últimos anos é longa. “O que vimos desde 2020 foram mudanças que ninguém imaginava. Como uma guerra no centro da Europa, o atual nível de conflito no Oriente Médio e questões climáticas pegando tão firme.”
Os números da dependência asiática
Em meio às tensões geopolíticas, os números mostram a crescente importância da Ásia para o agronegócio brasileiro. “Dois terços das nossas exportações” vão para a região, sendo que “a China é um pouco mais de um terço”, detalha Jank. “Se a gente considerar toda a Ásia, incluindo o Oriente Médio”, a dependência fica ainda mais evidente.
A atual centralidade asiática tem fundamentos sólidos. A região concentra “mais de 50% da população mundial” mas representa “apenas 20% dos recursos naturais, da água, e talvez uns 15% da terra”. É uma equação que torna “inevitável o casamento com o Brasil e com outros países fortes em commodities”.
O motor dessa demanda, claro, vem da transformação urbana. “A China dos anos 1970 era 80% rural e 20% urbana. Hoje, ela é 65% urbana e 35% rural”, diz Jank. “Quando essas pessoas migram do campo para a cidade, elas deixam de viver da agricultura de subsistência e passam a consumir produtos comprados. E o que elas vão fazer? Elas vão comer melhor.“
Além das mudanças de padrão de consumo na Ásia, o mundo enfrenta uma pressão demográfica sem precedentes. “Estamos falando, hoje, de 70 milhões de pessoas de saldo positivo por ano. Vamos chegar em 2050 a quase 10 bilhões de pessoas, hoje são 8 bilhões”, afirma Jank. “Mais da metade desse número virá do Sul da Ásia e da África Subsaariana.”
O problema é que essas regiões de maior crescimento populacional têm uma “agricultura muito primitiva, de pequena produção, com irrigação muito ruim, no caso da Índia, e com regimes tribais, no caso da África”. A pergunta que não quer calar, segundo Jank, é: “quem vai alimentar essa população adicional?”
Mas mais do que o contexto das demandas desses mercados, o mundo caminha para o que Jank define como de “fragmentação e desgovernança”. “São as palavras que estão sendo usadas para o período pós-2010, pós globalização iniciada em 1990 até 2010.”
Essa fragmentação não significa descentralização do poder, mas sim a formação de esferas de influência antagônicas. “Você tem várias esferas de influência que estão surgindo no mundo. A China tem a sua, os Estados Unidos tem a sua, a Rússia tem a sua”, diz ele.
“É um mundo multipolar caótico, sendo que tem dois grandes países que estão em uma disputa hegemônica, que são os Estados Unidos e a China.”
O limitado impacto nos EUA
Para o agronegócio brasileiro, os números das exportações para os EUA relativizam o impacto imediato das tarifas americanas e os atuais ataques de Trump ao país. “Os US$ 12 bilhões são 7% do que a gente exporta para o mundo em agro, de um total de US$ 165 bilhões para o mundo”, afirma. “Então, 7% não são muito relevantes.” A preocupação real está em outro lugar, segundo Jank.
“O que me preocupa demais é o que os EUA estão negociando com os países que mais nos interessam. O que vai sair da negociação EUA-China, EUA-Japão, EUA-Europa, EUA-Indonésia, EUA-Vietnã?”, questiona. “Nós vamos perder acesso nesse processo?”
Jank também faz uma crítica sobre o discurso atual da posição brasileira no agronegócio mundial. “No agro, ouvimos que o Brasil é o maior do mundo, o melhor do mundo. Nós não somos. Não somos o maior produtor mundial, não somos o maior consumidor, somos o terceiro maior exportador se considerarmos a Europa e os Estados Unidos”, afirma. “O Brasil somente é número um hoje em commodities agropecuárias. Aí sim, nessa categoria o país é o número um. A nossa lição de casa bem feita está nas commodities. Mas em valor agregado a gente não é um país que fez lição de casa.”
Mas apesar desse cenário Jank vê uma continuidade consistente nos avanços tecnológicos do agronegócio brasileiro, embora por motivos diferentes dos percebidos nos últimos anos. “Bioeconomia, biocombustíveis, biomassa, agricultura, integração lavoura-pecuária, bioinsumos, vão andar porque são economicamente viáveis”, explica.
“O Brasil tem sido campeão na região tropical de adoção de tecnologias que aumentam ao mesmo tempo a competitividade e a sustentabilidade”, destaca. Esse movimento é “puxado pelo mercado, essencialmente”, independentemente de agendas políticas ambientais que podem perder importância relativa no novo cenário global.
Para navegar nesse novo mundo, o Brasil precisa de “uma reflexão estratégica mais profunda”, na avaliação de Jank. “É uma pena que a gente não esteja fazendo isso, é o que tem faltado nos últimos meses. Porque botar governo e setor privado falando a mesma linguagem é muito complicado. E isso pode ter um enorme impacto de médio e longo prazo.”
Fato é que a experiência histórica mostra que guerras comerciais raramente têm vencedores. “Ela tem, na verdade, perdedores”, diz Jank. “A história de guerras comerciais no mundo são histórias horrorosas.” Ele lembra do período entre guerras, que assistiu a uma guerra comercial global iniciada pelos EUA, “elevando a tarifa também a 50%, e que gerou uma enorme recessão. O comércio caiu 60% e o mundo nem era tão integrado quanto é hoje.” (Forbes)