Ex-ministro produziu tese clássica sobre o café no Brasil e incentivou resolução de problemas do setor.
O economista Delfim Netto, que morreu nesta segunda-feira (12/8), foi professor, ministro de Estado e deputado, dentre outras funções públicas. Nessa jornada multifacetada, seu maior legado deve ser sentido no agronegócio, na avaliação do economista Marcos Lisboa, colunista da Folha e ex-presidente do Insper.
“Ele tem uma parte importante [no crescimento do agro brasileiro] tanto do ponto de vista acadêmico, quanto do ponto de vista de formador de política pública”, afirma Lisboa, que considera ainda hoje impressionante a tese de livre-docência de Delfim na USP, “O Problema do Café no Brasil”, apresentada em 1959 e que posteriormente virou livro.
Na obra, ele analisou a história da cafeicultura no Brasil e a política de valorização do produto durante a Primeira República (1889 a 1930), além das tentativas de proteger o setor (consideradas erradas pelo decano). É uma pesquisa que mistura análise econômica, histórica e de dados de um modo que ainda não era comum na academia brasileira.
E Delfim não parou na pesquisa. Trabalhou para ampliar a pauta exportadora brasileira, incentivou grupos de trabalho e inspirou estudos acadêmicos para aumentar a produtividade do setor. Ali se entendeu, por exemplo, que havia problemas de tecnologia e de solo em algumas regiões. O enfrentamento desse tipo de questão acabou desaguando, por exemplo, na criação da Embrapa, em 1973 (nessa época, Delfim era ministro da Fazenda).
“O Brasil já tinha muitos técnicos na área agrícola, mas aí veio uma decisão política de formar mais gente, formar técnicos e dar problemas para eles resolverem”, recorda Lisboa.
O ex-presidente do Insper afirma que “Delfim era um economista de sua época”, o que significa a adoção de políticas em que o Estado interferia ativamente na economia. “Você pode fazer uma série de distorções e incentivar alguns setores e não outros, interferir em preços, e essa era a visão dominante na época que acabou levando a problemas lá na frente”, diz Lisboa.
É uma visão, segundo o especialista, que é muito forte no pensamento econômico brasileiro que muitas vezes une esquerda e direita no país. “Não é uma discussão sobre se o Estado é necessário ou não. A questão é como o Estado pode auxiliar mais o crescimento econômico”, comenta.
Para ele, no caso do agronegócio, foi uma política bem-sucedida, com estímulo à inovação, à pesquisa, ao desenvolvimento tecnológico e ao empreendedorismo.
Para Lisboa, é importante lembrar de Delfim também no contexto da ditadura e do AI-5, em um “acerto de contas que não foi feito”. O economista foi ministro de governos militares e o último a morrer entre as pessoas que assinaram o Ato Institucional nº 5, que marcou o período mais duro da ditadura e deixou um saldo de cassações, direitos políticos suspensos, demissões e aposentadorias compulsórias.
Em depoimento à Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo, Delfim reafirmou que não se arrependia de ter apoiado a proposta. “Nas condições de informação que tinha naquela hora, eu repetiria meu voto. Ninguém poderia imaginar a barbaridade da tortura”, afirmou em 1998.
Lisboa conta que, antes da pandemia da Covid, encontrou Delfim algumas vezes, em oportunidades em que discutiram temas como a reforma tributária, mas nunca conversou com ele sobre a participação na ditadura. “Ele sabia o que eu penso sobre aquele período”, relembra (Folha)
Superministro da Fazenda e pai do milagre econômico: quem foi Delfim Netto
Ex-ministro chefiou a economia brasileira no período do “milagre econômico”, foi deputado federal, embaixador na França e conselheiro de Lula e Dilma
O ex-ministro da Fazenda Antônio Delfim Netto morreu, aos 96 anos, nesta segunda-feira (12). Ele estava internado há uma semana no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, devido a problemas de saúde.
Descendente de imigrantes italianos, nasceu e cresceu na capital paulista. Formou-se na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) em 1951 e participou do Conselho Consultivo de Planejamento (Consplan) do então governador de São Paulo Carlos Alberto Alves de Carvalho Pinto, em 1959.
Fez carreira acadêmica como professor titular de Análise Macroeconômica e recebeu o título de professor emérito pela FEA-USP.
Na gestão do governador Laudo Natel, em 1967, foi secretário da Fazenda paulista, antes de se tornar, no mesmo ano, ministro da Fazenda sob o governo do general Arthur da Costa e Silva, em plena ditadura militar (1964-1985).
Em sua passagem pela Fazenda, o país registrou crescimento médio anual de 9% do Produto Interno Bruto (PIB), período que ficou conhecido como “milagre econômico”. Contudo, tamanho crescimento veio acompanhado pela alta da inflação, que se tornaria o principal vilão da economia brasileira nas décadas seguintes.
Em 1968, Delfim foi um dos signatários do Ato Institucional 5 (AI-5), que extinguiu direitos civis e levou ao período de maior repressão no país. Ao prestar depoimento à Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, em 2013, o ex-ministro disse não se arrepender de ter assinado o documento.
“Se as condições fossem as mesmas e o futuro não fosse opaco, eu repetiria. Eu não só assinei o Ato Institucional 5 como assinei a Constituição de 1988”, declarou na ocasião.
O AI-5 deu plenos poderes a Costa e Silva, além de suspender o direito a habeas corpus em casos de crimes políticos, entre outras medidas. Delfim negou ainda ter conhecimento de casos de tortura no decorrer da ditadura militar no país.
Apesar do reconhecimento por sua atuação na área econômica, Delfim também era visto como um político. Suas habilidades nas articulações e nos bastidores para conseguir participar do poder e fazer avançar a agenda econômica são características comuns citadas por aqueles que conviveram ao seu lado.
Além disso, o ex-ministro era conhecido por sua capacidade de transitar em diferentes espectros ideológicos. Mesmo sendo um dos signatários do AI-5 – medida usada para perseguir opositores durante o regime militar -, Delfim também viria a ser interlocutor de muitos políticos e governos da esquerda.
Vida pós-Ministério da Fazenda
Em 1975, já no governo do general Ernesto Geisel – que não nutria simpatia pelo ex-ministro -, Delfim foi nomeado embaixador do Brasil na França, posto que ocupou por três anos em Paris.
De volta ao Brasil, teve uma breve passagem pelo Ministério da Agricultura no governo do general João Baptista Figueiredo em 1979. Sucedido na pasta por Angelo Amaury Stábile, Delfim foi designado para chefiar o Ministério do Planejamento, onde permaneceu até o fim da ditadura, em 1985.
Eleições, Constituinte e amizade com Lula
Com a redemocratização, elegeu-se deputado federal por São Paulo pelo Partido Democrático Social (PDS), sucessor da Aliança Renovadora Nacional (Arena), em 1986. Participou da Assembleia Nacional Constituinte no biênio 1987-1988 e foi reeleito em outras quatro oportunidades (1990, 1994, 1998 e 2002).
Teve passagens pelo Partido Progressista Reformador (PPR), pelo Progressistas e pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Não conseguiu se reeleger em 2006, deixando a Câmara dos Deputados ao término de sua legislatura, no ano seguinte.
A condição de ex-ministro da ditadura militar não impediu com que Delfim se aproximasse da esquerda e se tornasse um dos principais conselheiros do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua primeira passagem pelo Palácio do Planalto (2003-2010).
Para uma plateia de empresários, Lula citou, em 2006, a amizade entre ambos.
“Passei vinte e poucos anos criticando Delfim e hoje sou amigo dele. Acho que a evolução da espécie humana é assim. Quem é mais de esquerda vai ficando mais de direita. Quem é mais de direita vai ficando mais social-democrata, mais de centro. E as coisas vão confluindo de acordo com a quantidade de cabelos brancos que você tem e a responsabilidade. Não tem outro jeito”, afirmou Lula à época.
Após a saída de Lula e a eleição de Dilma Rousseff, Delfim manteve a condição de conselheiro econômico do governo. O apoio à petista não impediu que ele criticasse medidas da então chefe do Executivo.
Em 2014, criticou publicamente a tentativa do governo de controlar o preço da energia elétrica para moderar a inflação, a qual classificou como “populista”. Segundo ele, a medida elevaria a desconfiança de empresários com a economia brasileira, diminuindo investimentos e fazendo disparar própria inflação.
Num primeiro momento, criticou partidos que pediam o afastamento de Dilma da Presidência. Em entrevista ao portal Consultor Jurídico, em 2016, Delfim apontou a administração da presidente como o principal fator que levou ao seu impeachment.
“Sobre o impeachment, primeiro: ele está absolutamente dentro lei, dentro das disposições da Constituição. Houve, sim, violação de função; não adianta querer discutir. No setor privado, se o banqueiro tomou emprestado no seu banco, ele vai preso e o banco fecha. No Estado, a Lei de Responsabilidade Fiscal diz que se o Estado pegar emprestado de seu banco, é violação”, explicou.
Lava Jato e anos finais
Em março de 2018, Delfim foi alvo de busca e apreensão da Polícia Federal (PF) no âmbito da Operação Lava Jato.
A acusação do Ministério Público Federal (MPF) era a de que o ex-ministro teria recebido propina de R$ 15 milhões, por meio de contratos fictícios, do Consórcio Norte Energia (composto pelas empresas Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Odebrecht, OAS e J. Malucelli), que atuou na construção da Usina de Belo Monte, no Pará.
A defesa de Delfim negou a acusação e apontou que os valores recebidos por ele seriam de honorários relativos à consultoria prestada.
Delfim revelou-se também crítico da gestão Jair Bolsonaro (2019-2022), a quem acusou, em sua coluna na Folha de S. Paulo, de “administrar a pátria amada com os piores preconceitos identitários e religioso, além de revelar horror às evidências empíricas”.
Em 2022, Delfim chegou a afirmar ao portal Poder360 que o então presidente Jair Bolsonaro (PL) representaria um perigo maior ao mercado do que um eventual retorno de Lula ao Planalto.
Dedicou os últimos anos as suas colunas nos jornais, oferecendo sua visão e indicando os desafios a serem enfrentados pela economia brasileira.
O ex-ministro deixa filha e neto. Segundo sua assessoria, não haverá velório aberto e seu enterro será restrito à família (CNN Brasil)
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Com Embrapa e Proálcool Delfim alavancou o protagonismo do agro brasileiro
Por Ronaldo Knack
No final de uma tarde de 2008, contatei o assessor de imprensa do ex-ministro Delfim Netto para acertar detalhes de uma entrevista exclusiva que ele daria para o nosso TV BrasilAgro. Ajustamos que a entrevista seria concedida por ele em seu escritório no Pacaembu em São Paulo (numa esquina em frente ao estádio) na manhã seguinte e, o assessor meio constrangido, me consultou se poderia ser cedo.
Respondi que sim, até porque, meus deveres de ofício me fazem iniciar minha jornada de trabalho a partir das 2h da manhã. “Pode ser às 5h?”, indagou. “Pode sim, posso chegar aí logo depois das 4h para ajustarmos nosso equipamento”. “Fechado, esperamos você e sua equipe para às 4h então”, combinamos.
Quando chegamos no horário combinado, um cheiro gostoso tomava conta do sobrado onde já havia uma equipe de assessores e colaboradores trabalhando. Quando entrei no gabinete do ex-ministro e fui cumprimentá-lo, ao se levantar fiquei surpreso com a sua baixa estatura e animado com suas primeiras palavras: “Obrigado por estar aqui tão cedo. Você honra o setor que escolheu na sua profissão de jornalista, porque os produtores rurais sempre acordam cedo”.
Durante nossa conversa inicial, regada por um excelente cafezinho, Delfim Netto explicou que começava seu trabalho também às 2h pois era consultor de empresas e bancos e as bolsas asiáticas fechavam às 3h. Dificilmente me preocupava em redigir uma pauta nas entrevistas que faço, e no caso desta, não foi diferente. Lancei uma só pergunta: “Professor, o que o levou a apoiar a criação da Embrapa em 1973 e do Proálcool em 1975?”
Nos próximos 45 minutos ele falou sobre a importância dos investimentos que os produtores rurais vinham fazendo e vislumbrou o protagonismo que o agro começava a alcançar no mercado global. Não o interrompi em nenhum momento, até porque estava diante daquela que foi o “czar” da economia durante o período militar, professor emérito da FEA/USP e detentor de 5 mandatos como deputado federal.
Em minhas palestras, principalmente para estudantes universitários, relato esta experiência após a pergunta que me fazem sobre “qual foi o seu principal entrevistado nesta sua carreira de 55 anos como jornalista”. No início, constrangido, respondia: “Delfim Netto…”, com receio de ser vaiado. Mas, ao contrário do que imaginava, Delfim Netto sempre foi muito respeitado pelo que pensava e, principalmente fazia e, surpreendentemente ganhava palmas pela minha citação.
Em 2008, tive a oportunidade de entrevistar também para o TV BrasilAgro em Brasília o então ministro Miguel Jorge, que ocupava no governo Lula o Ministério do Desenvolvimento da Indústria e do Comércio – MDIC. Durante a entrevista o provoquei perguntado se era verdade que a sua indicação a Lula tinha partido de Delfim Netto. Com um largo sorriso, o ministro que também era jornalista e ocupou durante muitos anos o cargo de editor do O Estado de S.Paulo, confirmou.
Entrevistei outras vezes Delfim Netto, que sempre me impressionava pela sua cultura, inteligência e, principalmente, rapidez de um raciocínio claro e muitas quase sempre ferino ao se referir aos seus algozes, principalmente os esquerdopatas. Ele sempre se divertia com as críticas que recebia. Em seu gabinete de trabalho as paredes estavam recheadas de charges publicadas em sua trajetória profissional e política.
A mídia nesta gelada manhã de agosto de 2024, destaca esta versatilidade de Delfim Netto de ter se destacado como ministro da chamada “ditadura militar” e consultor influente dos governos de Lula e Dilma do PT. Talvez, se o ouvissem mais e compreendessem suas lições, Dilma não teria sido cassada como “presidenta” e Lula mão se meteria nos escândalos de corrupção que marcaram e ainda marcam seus mandatos (Ronaldo Knack é jornalista e bacharel em Direito e Administração de Empresas. Também é fundador e editor do BrasilAgro (www.brasilagro.com.br);)