Ataques no mar Vermelho e tensão no Irã desarranjam comércio, mas demanda segue alta.
A crise no Oriente Médio quintuplicou o preço médio de fretes pagos por empresas de transporte marítimo. Mais importante, os ataques no mar Vermelho e o risco de uma guerra regional centrada no Irã expõem os gargalos globais do comércio por navios.
Ele responde por mais de 90% do fluxo comercial entre países, e funciona como uma grande engrenagem com diversos pontos possíveis de engasgo, cortesia de turbulências geopolíticas, caprichos geográficos e mesmo a crise climática —que afetou o canal do Panamá, por onde passam 40% dos contêineres com exportações americanas.
Mas é a mais humana das empreitadas, a guerra, que tem feito governos e empresas refazer contas, de olho em potencial de escalada inflacionária e também lucros. O problema principal hoje se chama mar Vermelho, onde os rebeldes pró-Irã houthis, do Iêmen, passaram a atacar navios mercantes associados a Israel e aliados, como os EUA.
A campanha começou com um ataque com drones contra o porto de Eilat, em Israel, em 19 de outubro passado. Era uma forma de apoio ao grupo terrorista Hamas, que começava a sofrer a retaliação israelense pelo atentado inédito contra o Estado judeu, 12 dias antes.
As ações levaram a duas abordagens: os EUA lideram uma força-tarefa com o Reino Unido que visa interferir em ataques, mas sem escoltar navios, como por exemplo fazem os franceses com suas embarcações.
As maiores empresas transportadoras de contêineres e petroleiras passaram em dezembro a usar a rota contornando a África, acrescentando no mínimo duas semanas aos caminhos de cargas vindas do Oriente Médio e do Indo-Pacífico —leia-se China, a maior exportadora do mundo desde 2009.
“O frete não aumentou imediatamente. O mercado adaptou-se aos custos e isso ocorreu a partir de maio, devido a questões logísticas”, diz Andrew Lorimer, CEO da consultoria brasileira Datamar.
O resultado é aferível no índice FBX, da empresa espanhola Freightos, que calcula o custo de transporte de contêineres de 40 pés (12 metros) nas 12 principais rotas mundiais. No dia em que os primeiros drones houthis voaram pelo mar Vermelho, ele estava em US$ 1.048. Na medição mais recente, em 2 de agosto, em US$ 4.924.
Até maio, o salto inicial para a casa dos US$ 3.000 arrefeceu, com os preços baixando para níveis em torno de US$ 2.000. Depois, só subiram.
Os problemas são multifatoriais: o seguro para riscos de guerra escalou de 0,02% para 0,75% por contrato, tempo de mar ampliado (combustível, salários etc.) e até questões algo bizantinas: Singapura estava sobrecarregada como ponto de reabastecimento, mas a África do Sul, onde fica o cabo da Boa Esperança que viu crescer o tráfego, não trabalha com o combustível certificado na Europa.
Os houthis dizem ter feito qualquer coisa entre 70 e 120 ataques diversos com danos, a depender da fonte. Em junho, explodiram um petroleiro de bandeira grega. Na semana passada, voltaram a alvejar navios e anunciaram apoio a uma eventual ação do Irã contra Israel.
O mar Vermelho tem dois gargalos em um: o canal de Suez, ligando ao Mediterrâneo ao norte, e o estreito de Bab al-Mandab ao sul, levando ao golfo de Áden e ao Índico. Por lá passava, antes da guerra, de 12% a 15% do comércio mundial, e 30% dos contêineres, sendo a melhor rota à Europa não só para hidrocarbonetos do Oriente Médio, mas também de produtos chineses.
O Bab al-Mandab tem sua costa oriental controlada pelos houthis —o nome árabe, “portão das lágrimas”, remete à longa história de ação de piratas na região.
Por Suez, um clássico geopolítico aberto em 1869 cujo controle já pariu uma guerra em 1956, o tráfego segundo o monitor Portwatch, do Fundo Monetário Internacional, despencou. Eram 45 navios de carga e 21 petroleiros passando no dia do primeiro ataque houthi. Foram 25 e 9, respectivamente, em 29 de julho.
A possibilidade de uma guerra ampliada pela provável retaliação do Irã e do grupo libanês Hezbollah pela morte de líderes aliados por Israel, o que terá a participação houthi se ocorrer, joga luz em outro grande gargalo da região, o estreito de Hormuz, que liga as águas do rico golfo Pérsico ao mundo.
A costa setentrional do estreito é iraniana, deixando evidente o risco a embarcações que passarem por lá —responsáveis por 20% do petróleo mundial em 2023. Uma deterioração da segurança vai jogar ainda mais areia na engrenagem global, algo já visto em outras guerras por lá.
A crise atual mostra como toda a máquina pode ser afetada, com potencial de escalada inflacionária mais para a frente. A China, segunda maior potência mundial, depende de míseros 65 km de largura no ponto mais apertado do estreito de Málaca, entre a Indonésia e a Malásia para receber 80% de seus insumos energéticos.
Além disso, quase toda a exportação de R$ 3,1 trilhões para a Europa, além de R$ 1,3 trilhão na mão inversa para a costa chinesa, passam por lá. Não é casual a militarização chinesa do vizinho mar do Sul da China, que leva a tensões como a levantada na semana passada por um exercício militar dos EUA com as Filipinas.
Os dados da Portwatch mostram o impacto da guerra no Oriente Médio também em Málaca, com um decréscimo de navios e de volume comercial transitados por lá. O motivo, explica Lorimer, é o efeito cascata: um contêiner na rota China-Europa demora mais para chegar ao destino e voltar vazio à origem.
Logo, esses caixotões são disputados a tapa depois, elevando custos de forma adicional. A Maersk, segunda maior transportadora de contêineres com 14,6% do mercado em 2023, afirma ter colocado 125 mil unidades a mais nas suas rotas, e ainda assim vê o risco de um travamento geral do comércio.
“De longe vivemos a crise mais grave desde a pandemia”, diz Lorimer, lembrando que ali os custos chegaram a US$ 14 mil por contêiner devido ao estrangulamento de cadeias logísticas, com milhares de navios parados em portos chineses sem poder sair.
No caso brasileiro, um contêiner menor, de 20 pés (6 metros) teve seu frete aumentado de cerca de US$ 2.000 para até US$ 8.000 ou US$ 10 mil. A culpa é tempo de trânsito de navios em escala global, afetando a cadeia de transmissão entre eles, além do prêmio de risco.
Por evidente no capitalismo, alguém ganha na crise. “Com a demanda em alta, os armadores de contêineres estão lucrando horrores”, afirma o consultor. No seu mais recente comunicado, a Maersk disse que previa a ampliação de seu resultado final do ano, excluindo amortizações e juros, de US$ 7 bilhões para até US$ 11 bilhões.
No caso brasileiro, a disrupção do mar Vermelho afeta muito o envio de carnes para o Oriente Médio, grande mercado consumidor de frangos e bovinos. Ainda assim, diz Lorimer, as empresas estão com encomendas em alta, apesar do tempo para chegar lá ter dobrado de 30 para 60 dias, em média.
Um executivo de uma das maiores exportadoras brasileiras no setor disse, pedindo anonimato, que o plano é manter o pé no acelerador. O problema é na contramão, com impacto inflacionário que ainda não foi sentido, dado que os contratos são de longo prazo.
Por fim, o gargalo que diz respeito aos EUA, no Panamá, por onde passam 40% dos contêineres americanos rumo à Ásia, viveu uma crise diferente. A mudança no regime de chuvas devido ao fenômeno El Niño diminuiu entre 2023 e 2024 a água disponível no curso, obrigando uma redução em seu trânsito.
É um problema já superado, pelos dados da Portwatch que mostram a retomada do fluxo, mas que demonstra que os riscos não decorrem só de mísseis no setor (Folha)