Entrevista com Alberto Ramos Diretor de pesquisa macroeconômica para a América Latina do Goldman Sachs.
Segundo Alberto Ramos, economista do Goldman, sem um ajuste fiscal de verdade, o risco à frente para o País é crescimento do PIB a 1%, inflação a 6% e câmbio a R$ 7,00.
O Banco Central (BC) tomou a medida necessária ao adotar um choque de juros diante do problema fiscal e de uma economia superaquecida no Brasil, avalia o diretor de pesquisa macroeconômica para a América Latina do Goldman Sachs, Alberto Ramos. O problema, alerta, é que a política monetária está ‘sozinha remando contra a corrente’. “Se a corrente for muito forte, o barco não anda. Pode desviar das pedras, mas fica quase uma missão impossível para o Banco Central com a política fiscal no Brasil”, diz Ramos, em entrevista ao Estadão/Broadcast, da sede do Goldman Sachs, em Nova York, nos Estados Unidos.
Na sua visão, as medidas de corte de gastos foram um ‘pacotinho’ e as metas fiscais prometidas já não condizem com a realidade da economia brasileira. Nesse contexto, o aumento de juros sinalizado pelo BC pode não ser suficiente se o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) mantiver uma política fiscal expansionista. O risco à frente é crescimento a 1%, inflação a 6% e câmbio a R$ 7,00, projeta.
Diz também que o investidor estrangeiro já estava pouco interessado no Brasil, e que o pacote fiscal não conseguiu reverter esse sentimento. Ao contrário. “Dos poucos gringos que estavam interessados, alguns já estão jogando a toalha. Isso não é um bom sinal”, diz.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Em sua análise pós-Copom, o sr. disse que o colegiado tomou uma ‘decisão ousada’ e que a retomada do ‘forward guidance’ (comunicação dos passos futuros), projetando mais duas altas da mesma magnitude, foi ‘muito explícita’. O mercado já estava se inclinando a uma alta de 1 ponto porcentual, mas, de fato, a decisão do BC surpreendeu?
Ela foi necessária, porque a medida essencial não foi tomada. O problema número um, dois e três do Brasil hoje se chama fiscal.
E há dois problemas: o déficit primário e a dinâmica da dívida, que já é bastante alta e continua subindo cerca de três a quatro pontos porcentuais por ano. O Brasil tem hoje uma economia muito boa, um mercado de trabalho sólido, a receita crescendo muito bem em termos reais, porque a economia está indo bem e pelas medidas arrecadatórias que foram aprovadas nos últimos 18 meses. E ainda assim o País tem um déficit de um pouco abaixo de 10% do Produto Interno Bruto (PIB)? E quando o crescimento for 2% e a receita crescer menos, como é que fica?
Qual a raiz do problema?
Houve um exagero de gasto. Não venham dizer que não. Desde a PEC da transição, essa visão de tributar para gastar parece que não tem limite. E agora que não dá para tributar mais, o Brasil continua pisando em ovos para fazer um pacotinho.
A Argentina acaba de conseguir eliminar o déficit fiscal. É um bom exemplo ao Brasil?
O (Javier) Milei na Argentina fez um ajuste de cinco pontos do PIB, com a economia em recessão, e a popularidade dele se manteve. A Colômbia anunciou um pacote de (ajuste de) 1% do PIB e não chamou nenhuma conferência de imprensa. O México acha que vai crescer menos de 1% no próximo ano e se propôs, no orçamento, a fazer um ajuste fiscal de 2% do PIB. O Brasil fez um pacote que não é de corte de gastos, é de contenção. São economias contrafactuais. O gasto obrigatório vai crescer menos para que o discricionário possa aumentar. É um pacote de 0,2% do PIB e requereu uma planilha com 14 linhas de medidas e uma conferência de imprensa com seis ministros.
O pacote foi mais político?
O governo desenhou o pacote do ponto de vista de uma lógica política, não macroeconômica. Houve um erro da avaliação política achar que um pacote um pouquinho mais robusto ia ter um grande impacto na atividade e na popularidade do governo.
Foi tanto medo em torno de um pacote que, de fato, não é expressivo. O Brasil precisa de um fiscal mais robusto pela dinâmica da dívida. Não se trata de entregar déficit primário ou zero, mas primários positivos, e isso não vemos a perder de vista. É um problema, e mesmo que não fosse, o Brasil teria um problema fiscal. A questão é que a economia está sobreaquecida e colocando pressão nas expectativas, no câmbio e forçando o Banco Central a dar um choque de juros. Então, do ponto de vista cíclico, se justifica uma política fiscal mais apertada para ajudar o Banco Central a controlar a inflação. O governo cometeu dois erros.
Quais?
O primeiro foi na avaliação da transição política, achar que a economia estava muito ruim, que era preciso recompor a base tributária e gastar. Foi uma farra de gasto e que levou ao sobreaquecimento do PIB. O governo turbinou a economia cedo demais em relação ao ciclo político. Geralmente, o que qualquer governo faz é segurar a onda nos primeiros dois anos, ganhar espaço fiscal, para depois gastar um pouquinho. Todo mundo quer ser reeleito. É do jogo, ninguém é criticado por causa disso. Quem está no poder quer ficar e quem está fora quer entrar. O (ex-presidente Jair) Bolsonaro fez isso, todos os outros que o antecederam também. Era o que seria de se esperar. Agora, o governo foi com muita sede ao pote, exagerou a mão no gasto.
E o segundo erro?
A economia, que não estava assim tão ruim, rapidamente sobreaqueceu. E hoje o Brasil tem um pepino na mão. Ainda tinha tempo de corrigir, porque a eleição é em dois anos. O que era necessário agora? Depois desse erro inicial, o governo deveria segurar a onda e complementar o aumento de juro do Banco Central com uma política fiscal mais apertada. A economia iria se estabilizar, desacelerar um pouquinho, mas não colapsar. Agora, o governo mostrou que não quer fazer isso. Pode ser um erro porque agora não tem âncora fiscal, com uma demanda demasiada da política monetária.
A gente está vendo um filme de uma família na praia, contentíssima. Parece que está tudo bem, mas está vindo aí um tsunami. E o mercado está antecipando isso
Qual o risco?
A política monetária está sozinha remando contra a corrente. Se a corrente for muito forte, o barco não anda. Pode desviar das pedras, mas fica quase uma missão impossível para o Banco Central com este tipo de política fiscal. Esse pode ser o segundo erro. Ainda tinha tempo de corrigir e depois dar uma alavancada para alinhar a economia com o ciclo político. E, ao não fazer isso, pode se ter uma desaceleração mais abrupta da economia do que em vez de tirar alguma pressão e deixá-la desacelerar. Ainda estamos para ver esse filme.
O pior ainda está por vir?
A gente está vendo um filme de uma família na praia, contentíssima. Parece que está tudo bem, mas está vindo aí um tsunami. E o mercado está antecipando isso, de que não vai terminar bem.
O mercado é mais duro com Lula do que foi com Bolsonaro?
Entrar nessa de que está tudo bem, de que é o mercado que tem má vontade em relação ao governo, não resolve o problema. Ignorar os sinais do mercado não é uma boa. O mercado olha a política macro e suas implicações para o futuro do País. Se fosse uma coisa emocional, alguém ia tomar a outra ponta e ganhar dinheiro. E ninguém está fazendo isso. O mercado quer que o País vá bem, cresça com inclusão e paz social, e que seja sustentável. O que eu acho que o governo não entende é que a economia não está em um equilíbrio estável, mas altamente instável porque está sobreaquecida. O hiato do produto (o crescimento da economia acima do seu potencial) está cada vez mais positivo.
O que vem à frente?
Não dá para repetir um segundo ano de crescimento a 3,5%, inflação a 4,5% e câmbio a R$ 6,00. O desemprego está no menor nível dos últimos 14 anos, e isso está colocando muita pressão na inflação, em especial a de serviços. Então, este equilíbrio não é estável. A próxima interação de uma economia sobreaquecida é crescimento a 1%, inflação a 6% e câmbio a R$ 7,00, se não forem tomadas as medidas necessárias. Quanto mais o governo resistir, mais custoso será arrumar a casa.
Por que o alívio do mercado após a surpresa com a alta na Selic e a retomada do ‘forward guidance’ foi tão curto?
Imagine se o Banco Central tivesse aumentado 0,75 ponto porcentual? Não teria nem tido efeito, seria pior do que foi. O mercado fez o trabalho certo e se moveu antes.
Estamos falando em contingenciamento, bloqueio de gastos para entregar uma meta fiscal que hoje não tem nada a ver com a realidade macro do Brasil. Se alcançá-la, ainda será muito pouco
O temor de dominância fiscal (situação em que a alta do juro já não obtém o efeito de reduzir a inflação) persiste. O Brasil corre esse risco?
O Brasil pode ainda não estar, mas, claramente, há sintomas de um regime de dominância fiscal e os riscos são maiores do que há seis meses. Mas não é um processo irreversível, em que nada funciona e isso termina muito mal. Ainda é possível resolver. E requer o quê? Uma política fiscal mais apertada. A resposta está aí. O fiscal está muito complicado, muito ruim.
Muitos economistas e executivos dizem que o problema fiscal do Brasil não é difícil de ser resolvido. O sr. concorda?
Este é um problema que tem solução. Se fosse um problema sem solução, a gente deveria entrar no desespero. O que mais preocupa o mercado é que quem tem a solução na mão, mas não quer entregar. Estamos falando em contingenciamento, bloqueio de gastos para entregar uma meta fiscal que hoje não tem nada a ver com a realidade macro do Brasil. Se alcançá-la, ainda será muito pouco.
O BC indicou a Selic a 14,25%. É suficiente?
Esse aumento de juros pode não ser suficiente se não arrumar o fiscal. Se o governo entrar naquela dinâmica do ‘morde e assopra’, que o Banco Central aperta e o gasto fiscal continua, o risco de isso terminar muito mal aumenta. A coisa piorou. O sentimento local é muito negativo.
E como fica a cabeça do investidor estrangeiro em meio a tudo isso?
O gringo está também ficando muito negativo. Esse investidor estava pouco interessado no Brasil. O que eu vi até há pouco tempo era um local muito negativo, e o gringo desinteressado. Dos poucos gringos que estavam interessados, alguns já estão jogando a toalha. Isso não é um bom sinal. Tem gente que apostou que ia dar certo, que o juro ia cair, mas já perdeu dinheiro duas ou três vezes, e o Brasil já não interessa mais.
O presidente Lula teve uma relação conflituosa com o presidente do BC, Roberto Campos Neto. O futuro presidente do BC, Gabriel Galípolo, indicado por Lula, assume com um desafio muito maior na política monetária?
Sim. O Galípolo pegou um limão, uma situação extremamente difícil de manejar. Mas eu não acho que ele vai ser ‘dovish’ (suave na condução da política monetária) não. Ele é extremamente inteligente e tem uma inteligência emocional altíssima, tecnicamente já sabia muito e ficou ainda mais por dentro da dinâmica da política monetária e financeira. O Galípolo é capaz de convencer o governo e o Lula de fazer o que é necessário agora, e que isso é bom para o País e politicamente. Protelar é pior. Não compro absolutamente nada que ele vai ser ‘dovish’.
O que mais te preocupa?
Não ter uma âncora fiscal, e que ainda estão puxando para o outro lado. O trabalho que estão dando ao Banco Central é uma missão impossível se o fiscal continuar a puxar nessa direção. Isso que me preocupa, não que o Banco Central falhe na sua missão. Também pode acontecer, mas não é o que me preocupa.
Com o choque de juros do BC, como ficam as projeções do Goldman para o Brasil?
As projeções ficam até deixarem de fazer sentido.
E qual a expectativa para o câmbio?
Está sob revisão. O câmbio tem potencial para apreciar condicionado a uma resposta fiscal. Mas essa probabilidade não parece ser muito alta. Se o governo não der a resposta fiscal, o Brasil entra em uma zona meio escura. Não se pode obrigar as pessoas a ficarem animadas e comprarem ativos brasileiros nessa situação.
Quanto ao risco de uma desaceleração muito abrupta da economia que o sr. mencionou, com os juros em 14,25%, esse cenário já se materializa em 2025?
Essa vai ser a próxima ficha a cair. Se o governo for por este caminho, no qual o fiscal não dá o suporte necessário, o risco de um cenário mais extremo, de uma desaceleração mais abrupta da economia, aumenta. Precisa desse choque de juros. Se o Banco Central não fizer isso, é pior, a economia cai mais rápido e vai mais fundo, o câmbio vai a R$ 7,50, o sentimento deteriora ainda mais. É um trabalho difícil, mas tem de ser feito mesmo que no final tenha um sucesso limitado e que seja um processo prolongado.
Há luz no fim do túnel?
Nada dura para sempre. A boa notícia é que o problema do Brasil tem solução. É virar e andar para trás. Todo mundo já vinha dizendo que o gasto estava crescendo muito rápido, que o arcabouço era poroso e que as metas só se sustentavam com um aumento muito elevado de receitas. Acabou por turbinar demais e a economia tem um limite de velocidade, que foi excedido.
Mas há uma certa crença ideológica de que o Brasil só cresce com gasto fiscal e que, se não for o governo e os agentes paraestatais como as empresas e bancos públicos, Estados e municípios, a economia nunca anda. Eu discordo. O Brasil tem desigualdades sociais inaceitáveis e há claramente o papel do Estado, mas com limite e tempo. Não dá para o País se endividar, tributar e gastar.
O Fed (banco central americano) pode cortar menos os juros por medidas inflacionárias na gestão de Donald Trump, mas antes disso o comportamento dos preços já preocupa o mercado. Como esse quadro pode afetar o Brasil?
Infelizmente, os maiores problemas do Brasil estão dentro, não fora de casa. Um dólar mais forte e um Fed com menos capacidade para cortar os juros não ajuda. É mais um argumento para o País fazer o trabalho de casa na área fiscal. É preciso dar mais resiliência à economia nesse contexto global.
Nos EUA, a situação econômica, em especial, a inflação, causou uma surpresa nas urnas, com uma vitória maciça de Donald Trump. O mesmo filme pode se repetir no Brasil em 2026?
Pode. Cada caso é um caso. Não dá para fazer muitos paralelos. As pessoas confundem muito inflação com nível de preço. Inflação não é o nível de preço. É a taxa de variação dos preços. A inflação está baixa, mas o nível de preço subiu muito. O tema da inflação pode ter um custo político muito elevado.
Os mercados emergentes tiveram mais upgrades do que downgrades de rating neste ano. O Brasil está nesta lista, com a recente decisão da Moody’s. Sem maior comprometimento fiscal, o Brasil pode dizer adeus à retomada do grau de investimento com Lula?
Já era pouco provável que o Brasil recuperasse o grau de investimento. Ficou mais distante e, agora, o risco está quase na direção contrária. Se o Brasil não resolver o problema fiscal, com a deterioração das condições financeiras, do câmbio, da pressão na política monetária, pode chegar em 2025, 2026 com crescimento baixo, inflação e juros altos.
E se nada for feito?
Vamos imaginar que o Brasil não enfrente uma crise fiscal, a economia desacelera, os juros sobem e o governo empurra com a barriga o pacote fiscal, faz um contingenciamento daqui a dois meses, depois outro, pede uma medida tributária ao Congresso, e o câmbio fica em R$ 6,00, não volta. Carregar uma dívida alta tem consequências macroeconômicas em termos de juro real, investimento, crescimento, potência da política fiscal e da capacidade do Banco Central de entregar a inflação na meta. Ou seja, mesmo não tendo uma crise fiscal, não é uma boa. O equilíbrio macroeconômico mais saudável seria um fiscal não expansionista. Vamos ver (Estadão)