No dia 2 de abril, o presidente Donald Trump anunciou suas tarifas do “Dia da Libertação”, exibindo um quadro cheio de números que mostravam o quão injustamente o mundo tratava os Estados Unidos. Os números eram absurdos, mas a mensagem era clara: a era do livre-comércio havia acabado.
Os mercados estremeceram, os aliados da América ficaram furiosos e os economistas previram uma catástrofe. Torsten Slok, da Apollo — um gigante dos mercados privados — estimou em 90% as chances de uma recessão provocada por tarifas nos EUA.
Em partes da economia americana, a dor é real. Os preços de bens duráveis — uma categoria que inclui eletrodomésticos e automóveis — subiram mais de 3% em ritmo anual no segundo trimestre de 2025, o aumento mais rápido desde o início dos anos 1990 (excluindo o período da pandemia de covid-19). O preço dos brinquedos, a maioria importada da China, cresce quase 5%, uma alta igualmente incomum.
No total, nossas estimativas indicam que as tarifas estão adicionando cerca de 0,3 ponto porcentual à inflação. O emprego também enfraqueceu nos setores mais expostos às tarifas, como manufatura e varejo; os empresários culpam os custos mais altos e a incerteza. O sentimento do consumidor em setembro estava 20% abaixo do nível de um ano atrás. Em comparação com um mundo sem tarifas, os Estados Unidos estão em pior situação.
Mesmo assim, seis meses depois, o ajuste completo ainda não chegou. Não há uma inflação fora de controle. A economia americana cresceu 3,8% em ritmo anualizado no segundo trimestre; o Federal Reserve de Atlanta prevê algo semelhante para o terceiro. Os consumidores continuam gastando, as empresas investindo e o mercado de ações em alta. As perspectivas também melhoraram em outras partes do mundo. Em setembro, a OCDE elevou sua projeção de crescimento global para 3,2%, contra 2,9% três meses antes.
Por que as boas notícias?
Uma razão é que as tarifas foram mais brandas do que o anunciado. Em abril, estimava-se que a taxa média americana estava próxima de 30%; hoje, os mesmos modelos a colocam em cerca de 18%. Trump ameaçou a China com tarifas de 145%, mas, em setembro, estava aplicando taxas de pouco mais de um terço disso. As da Coreia do Sul caíram de 25% prometidos para 15%.
Até o Lesoto — um pequeno país pobre e sem saída para o mar, que vende principalmente roupas aos EUA — recebeu uma tarifa de 50%, que nunca foi aplicada. Atrasos na implementação amenizaram o impacto. Uma decisão da Suprema Corte pode bloquear boa parte das tarifas de Trump: as empresas estão aguardando mais clareza antes de repassar os custos aos consumidores.
As isenções reduziram ainda mais o impacto. Quase metade das importações americanas foi isenta das tarifas de Trump. Eletrônicos como smartphones e computadores foram totalmente poupados. A tarifa de 50% sobre o Brasil inclui cerca de 700 exceções, reduzindo-a para algo em torno de 30%. A tarifa nominal de 35% do Canadá, segundo o banco Scotiabank, é, na prática, próxima de 6%, em grande parte porque os produtos que se qualificam sob o Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA) são isentos.
Até tarifas setoriais estão cheias de brechas. As novas tarifas farmacêuticas de Trump, anunciadas em 100% e com início previsto para 1º de outubro, excluíram os medicamentos genéricos (que representam 90% dos remédios vendidos nos EUA) e as empresas de marca com planos de investimento no país. Nesse dia, ele suspendeu as medidas completamente, à medida que começavam as negociações.
Mesmo após as isenções, a diferença entre as tarifas “no papel” e as tarifas efetivamente aplicadas é impressionante. O Budget Lab da Universidade Yale estima que a taxa implícita dos EUA, derivada de dados alfandegários, é aproximadamente metade do que deveria ser segundo a política atual. Parte dessa diferença reflete o chamado “antecipamento de importações”. Como as tarifas raramente se aplicam a mercadorias em trânsito, as empresas correram para estocar produtos durante o verão, elevando as importações a níveis quase recordes.
Outra parte vem de brechas e descumprimentos. Os economistas costumam estimar uma “não conformidade” de 10% a 15%; as regras complexas de Trump parecem tê-la ampliado. A diferença entre o que a China relata exportar para os EUA e o que os EUA registram importar da China aumentou, apesar do fim da isenção de minimis para pequenos pacotes. Algumas empresas podem estar subfaturando.
A Whirlpool, fabricante americana de eletrodomésticos, denunciou aos reguladores que suas rivais reduziram os valores declarados na alfândega após a entrada em vigor das novas tarifas. A reclassificação também pode ter papel nisso. A fatia das exportações canadenses consideradas compatíveis com o USMCA disparou, sugerindo muita rotulagem estratégica.
O fator mais importante, porém, foi o que não aconteceu: retaliação. Os modelos econômicos previam tarifas de “olho por olho”; em vez disso, os parceiros comerciais dos EUA em grande parte se contiveram. Poucos são grandes o suficiente para causar danos reais sozinhos, e houve pouca coordenação. Isso talvez se deva ao fato de que os EUA importam menos do que no passado.
No início do século, o país representava um quinto das importações globais; hoje, algo em torno de um oitavo. O Brasil envia apenas 13% de suas exportações para os EUA, contra 26% no início dos anos 2000. Mesmo onde a dependência ainda é significativa, como no Sudeste Asiático, os países têm poucos incentivos para retaliar. Muitos enfrentam tarifas de cerca de 20%, o que garante que poucos saiam perdendo em relação aos vizinhos.
Em vez de retaliar, muitos países estão diversificando o comércio. A China, principal alvo das tarifas de Trump, viu suas exportações para os EUA despencarem — mas seu comércio total se manteve. De junho a agosto, o valor de suas exportações cresceu 6% em relação ao ano anterior, com vendas para o Sudeste Asiático subindo um quinto (20%) e para a Europa quase 10%.
Têxteis chineses inundaram os mercados europeus, onde as importações de roupas e tecidos da China aumentaram cerca de 20% na primeira metade de 2025 em comparação ao mesmo período do ano anterior. Produtos eletrônicos estão fluindo para o Sudeste Asiático.
As tarifas de Trump também estão aproximando outros países. O Canadá reforçou os laços com o México enquanto ambos se preparam para renegociar o USMCA com os EUA no próximo ano. Em 23 de setembro, a União Europeia assinou um acordo há muito aguardado com a Indonésia, eliminando tarifas altas sobre bens industriais; também está próxima de um pacto com a Índia.
Muitos países estão se aproximando mais da China. A Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean) ampliou seu acordo com a potência asiática. O investimento chinês no Brasil disparou mais de 60% no primeiro semestre do ano, em comparação ao mesmo período do ano passado.
Tudo isso levanta uma questão: o que os EUA ganharam?
A arrecadação com tarifas aumentou em US$ 19 bilhões por mês em relação ao ano passado. Embora isso compense parcialmente o custo dos recentes cortes de impostos de Trump, o país ainda tem um grande déficit orçamentário. E Trump planeja usar boa parte dessa receita extra para compensar os perdedores — como os fazendeiros — transformando as tarifas em um imposto regressivo.
O déficit comercial está se ampliando, o investimento ainda não se materializou e a prometida revitalização da manufatura continua sendo uma miragem.
Até agora, as empresas americanas têm absorvido a maior parte do custo das tarifas. Margens de lucro gordas e estoques importados antes da entrada em vigor das tarifas ajudaram. Mas, à medida que esses amortecedores diminuem, os preços devem subir. O Budget Lab de Yale estima que as tarifas reduzirão a renda das famílias em cerca de US$ 2,4 mil por ano.
Como a implementação escalonada das medidas de Trump espalha os aumentos por vários trimestres, o que poderia ter sido um choque pontual corre o risco de se transformar em uma inflação persistentemente mais alta. Com as expectativas de inflação de curto prazo já subindo, isso pode levar o Federal Reserve a manter juros mais altos por mais tempo — o que, com o tempo, prejudicará a demanda.
A forma como outros países lidam com as tarifas americanas — e com o excesso industrial da China — moldará a próxima fase do comércio global. Alguns já estão começando a erguer suas próprias barreiras. O México planeja uma tarifa de 50% sobre carros chineses. A União Europeia se prepara para se juntar aos EUA e ao Canadá no combate ao aço chinês barato, cortando cotas de importação e elevando tarifas. No Sudeste Asiático, o fluxo de produtos chineses está levando governos a considerar novas salvaguardas.
Ainda assim, a lógica da abertura continua exercendo força. Pequenas economias estão se unindo para manter o comércio ativo.
Nova Zelândia, Cingapura e Emirados Árabes Unidos criaram a Future of Investment and Trade Partnership, uma coalizão de 14 países. O Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP), um amplo pacto asiático que inclui a China, estuda a entrada de novos membros e uma integração mais profunda. A União Europeia e os países do CPTPP — um acordo transpacífico que inclui Austrália, Canadá, Japão e México — podem tentar alinhar seus padrões e expandir a cooperação.
Mesmo governos céticos em relação à globalização, como Índia e Indonésia, falam sobre a necessidade de defender o comércio. A ordem liberal pode estar sem líder, mas ainda não perdeu seus discípulos (The Economist)