Por Charlene de Ávila e Néri Perin
O Plano Safra 2025/2026, recém-anunciado com pompa e promessas, traz uma novidade que pode parecer técnica, mas que esconde um problema de fundo: a obrigatoriedade de cumprimento do Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC) como condição para acesso ao crédito rural com juros subsidiados e ao seguro rural subvencionado.
Aliás, o Plano chegou com promessas de apoio, desenvolvimento, sustentabilidade e toda aquela ladainha que recitam com sotaque técnico e perfume de sala refrigerada. Mas no campo, a história é outra: se você não tem consultor, não tem trator com wi-fi, nem faz parte do agro de propaganda da Faria Lima, o plano safra pode virar safra sem plano.
Agora, o governo resolveu que o Zoneamento Agrícola de Risco Climático (ZARC) será a nova constituição agrícola. Só planta quem obedece. Quem ousar fugir da “janela ideal”, mesmo que por chuva fora de hora, trator quebrado ou simples realidade de vida, perde o direito ao seguro rural. E o crédito com juros decentes? Foi embora junto, correndo mais que enxurrada de novembro.
Oras, meus senhores, o ZARC, que nasceu para orientar, agora julga, pune e exclui. E o agricultor, que antes era protegido pelo Estado, virou réu do sistema. É a burocracia climática como ferramenta de seleção rural. Na prática, o que temos é uma agricultura sob vigilância meteorológica, onde a semente só pode brotar com certidão, senha e carimbo.
Na teoria, trata-se de uma medida de gestão de risco. Na prática, é um mecanismo de exclusão silenciosa. O produtor que não conseguir plantar dentro da “janela climática” definida pelo ZARC perde o direito ao seguro e pode ser travado no crédito. Isso significa que quem mais precisa de proteção — o agricultor de risco real — será justamente o excluído do sistema de apoio oficial.
Enquanto isso, os grandes produtores com consultorias técnicas e modelos digitais conseguem cumprir o zoneamento com facilidade e ainda garantem bônus de juros baixos e proteção financeira. O ZARC, que nasceu como ferramenta de orientação, está sendo transformado em filtro de seleção social dentro da política agrícola brasileira.
E o governo, ao invés de ampliar assistência técnica, adaptar o zoneamento às realidades regionais e oferecer transição gradual, simplesmente empurra a regra goela abaixo. Resultado? Milhares de pequenos e médios produtores, especialmente na agricultura familiar, no Semiárido e nas áreas de fronteira agrícola, podem ficar fora do jogo, sem nem entender por quê.
Essa medida parece responder mais ao apetite dos bancos e seguradoras do que às necessidades do campo. Ela alinha a política agrícola ao mercado financeiro, transformando o crédito rural em produto de risco calculado — onde só entra quem já está dentro.
A pergunta que fica é: qual o verdadeiro papel do Estado na agricultura brasileira? Se for apenas proteger o crédito e a estatística, a política agrícola vira planilha. Se for garantir soberania alimentar, equidade no campo e permanência da agricultura familiar, então a lógica precisa ser outra: transição técnica com justiça social e adaptação local.
Se a agricultura é a arte de lidar com o imprevisível, o novo modelo quer torná-la uma ciência exata — mas só para quem pode pagar pela exatidão.
Charlene de Ávila é advogada, mestre em Direito e consultora jurídica em propriedade intelectual na agricultura do escritório Néri Perin Advogados Associados.
Néri Perin é advogado agrarista especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. É diretor administrativo do escritório Néri Perin Advogados Associados.