Gustavo Müller, pesquisador na Universidade de Leuven (Bélgica) e Bruno Theodoro Luciano, pesquisador na Universidade Livre de Bruxelas e doutor em ciência política e estudos internacionais pela Universidade de Birmingham (Reino Unido)
Não há consenso em nenhum dos lados, mas ambos fundamentalmente precisam que tratado avance.
A assinatura do acordo de associação entre o Mercosul e a União Europeia nesta sexta-feira (6/12), durante a Cúpula do Mercosul em Montevidéu, representa um marco de um longo e conturbado processo. Após mais de 20 anos de negociações, o texto finaliza um ciclo exaustivo de debates e concessões.
O pacto cria uma área de livre comércio abrangendo 780 milhões de pessoas, com um PIB combinado de mais de US$ 20 trilhões (R$ 120,37 trilhões). No entanto, a celebração deve ser cautelosa: os desafios para a ratificação do acordo no contexto europeu, em meio a incertezas políticas e polarização, mostram que a jornada está longe do fim.
Esse é um acordo sem consenso em nenhum dos lados, mas do qual ambos fundamentalmente precisam.
Para a União Europeia, o pacto é uma tentativa de se reposicionar globalmente em um momento de crescimento econômico lento e competitividade em declínio somados ao Brexit e à guerra na Ucrânia que aumentou as pressões por segurança energética e alimentar.
Além disso, o retorno de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos reforça incertezas sobre o sistema comercial multilateral e as parcerias transatlânticas. Nesse contexto, países como a Alemanha emergem como grandes defensores do acordo, enxergando na abertura do mercado do Mercosul uma forma de revitalizar setores industriais e diversificar mercados de exportação.
No Mercosul, a assinatura do acordo constitui um momento decisivo para o futuro do bloco, ameaçado de irrelevância e até de dissolução. Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai enfrentam os desafios de um sistema internacional em rápida transformação, com disputas por recursos naturais, pressão por descarbonização e por atualização tecnológica.
O acordo oferece uma oportunidade única não apenas de maior volume comercial, mas também de convergência regulatória, elemento que vai além da simples abolição de tarifas e que pode criar uma nova dinâmica dentro do próprio Mercosul, estimulando reformas e cooperação interna.
Por outro lado, o pacto exporá a indústria do Cone Sul à concorrência sem a proteção tarifária, o que por décadas foi uma característica central das políticas industriais dos países do Mercosul. As consequências dessa abertura dependerão das políticas públicas e industriais adotadas pelos governos e de medidas compensatórias nacionais e regionais para mitigar impactos em setores mais vulneráveis.
Sem uma estratégia clara, a liberalização comercial pode aprofundar desigualdades econômicas e regionais dentro do bloco.
Ademais, setores agrícolas europeus, especialmente na França, Polônia e Irlanda, têm se mobilizado contra o acordo e se oporão à sua ratificação e implementação. Esses grupos argumentam que os produtores do Mercosul não seguem os mesmos rígidos padrões ambientais impostos na Europa, o que representaria concorrência desleal.
Essas resistências refletem a polarização gerada pelo acordo e a aposta arriscada da Comissão Europeia em avançar com o pacto, mesmo diante da oposição de países importantes.
Governos como o da França já se manifestaram contra o pacto, pressionados por agricultores e ambientalistas. O país enfrenta um cenário político frágil, e ceder ao acordo pode desgastar ainda mais o governo e abrir caminho para os extremos políticos.
Outros países, como a Bélgica, onde a fragmentação política frequentemente trava decisões importantes, também são fontes de incerteza no futuro processo de ratificação.
Com a assinatura do acordo, as duas regiões lançam um sinal claro: embora as dificuldades sejam imensas, o novo cenário de interdependência global exige mais cooperação e menos isolamento.
Em tempos de incertezas econômicas, disputas geopolíticas e crises globais, o acordo Mercosul-UE simboliza um esforço para encontrar equilíbrio em um mundo fragmentado.
O acordo tem o potencial de redesenhar as relações entre Europa e América Latina nas próximas décadas. Além disso, ele fortalece o Mercosul como vetor de inserção do Brasil no cenário global e reposiciona a velha Europa no contexto de suas renovadas relações internacionais (Folha)
Frigoríficos devem ser as empresas mais beneficiadas com acordo Mercosul-UE
Grandes grupos como JBS, Marfrig e Minerva são alguns que possuem unidades habilitadas para embarcar ao mercado europeu e podem ser favorecidos.
As empresas do setor frigorífico do Mercosul tendem a ser as mais beneficiadas com o acordo entre o bloco e a União Europeia, cujas negociações foram concluídas nesta sexta-feira (6/12). A expectativa é que as exportações de carnes, produto de alto valor agregado, tenham aumentos relevantes.
Grandes grupos como JBS, Marfrig e Minerva são alguns que possuem unidades habilitadas para embarcar ao mercado europeu e podem ser favorecidos.
“É, de longe, o setor que mais vai se beneficiar. Quando um brasileiro conhece a Europa, ele se espanta com o preço elevado das carnes atualmente”, afirma o estrategista-chefe da RB Investimentos, Gustavo Cruz, sobre o cenário de escassez de oferta na UE.
Na visão do especialista, o fato de existir uma lacuna no segmento de proteína animal no bloco europeu, que deve se traduzir em demanda para o Mercosul, foi um dos motivos que fez com que a cadeia pecuária da UE tivesse maior resistência contra o acordo.
Ações
Apesar do horizonte promissor, a conclusão do acordo não está mexendo com o desempenho das ações dessas empresas no pregão desta sexta-feira, na B3.
“Hoje, a notícia que os deputados querem desidratar a proposta de corte de gastos do governo federal está prevalecendo, puxando a bolsa para baixo”, explica Cruz.
No entanto, ainda é possível que as ações tenham algum reflexo positivo, pensando nos benefícios de médio e longo prazo que o acordo Mercosul-UE trará para o mercado.
Dentro do acordo está estabelecida uma nova cota para exportações de carne de frango, por exemplo, no total de 180 mil toneladas equivalente-carcaça (50% com osso e 50% de carne desossada) com tarifa zero para embarque à União Europeia, que será compartilhada pelos países-membros do Mercosul.
A cota deverá ser atingida ao longo de seis anos (30 mil toneladas no primeiro ano, 60 mil toneladas no segundo, até alcançar o total de 180 mil toneladas). Após este período, a cota será de 180 mil toneladas anuais, segundo a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).
Também há cota para carne suína, no total de 25 mil toneladas (seguindo a mesma sistemática gradativa determinada para a carne de frango, ao longo de seis anos) com tarifa de 83 euros por tonelada.
Outras áreas
O estrategista da RB Investimentos diz que, no geral, a negociação comercial entre os dois blocos é muito positiva para o agronegócio.
“Se a gente pegar como referência o que aconteceu em outras partes do mundo, geralmente, depois de fechar acordos comerciais, você intensifica as exportações e importações entre os dois lados”, ressalta.
Vale destacar que alguns setores podem ficar mais pressionados pelo aumento da concorrência com os importados, como os vinhos e lácteos.
“Agora, os vinhos da França, Itália, vão chegar mais baratos aqui. O setor de laticínios aqui no Brasil, a gente sabe que vai enfrentar uma concorrência forte da Itália, que já é referência no mundo por conta dos seus queijos, e também vão chegar com preços mais palpáveis para a população brasileira”, pontuou.
Transformação do comércio
A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) afirmou que a conclusão do acordo entre Mercosul e União Europeia representa um marco diplomático histórico para ambos os blocos, “com potencial de transformar as relações comerciais entre as regiões de forma duradoura”.
Em nota, a associação diz que defende a formalização do acordo há mais de duas décadas e que, embora a entrada em vigor não seja imediata, a assinatura do tratado representa um “avanço significativo”.
A Abiec salientou que o acordo visa a complementariedade da produção entre os países sul-americanos e europeus.
“Em específico, o setor da carne bovina do Brasil reforça o seu desejo de parceria com o mesmo setor na Europa”, diz a nota.
No caso da carne bovina, o acordo estabelece quotas de 99 mil toneladas com tarifas reduzidas para 7,5% para os quatro países do Mercosul.
Suínos e frangos
A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) comemorou o anúncio da conclusão do acordo entre Mercosul e da União Europeia. Para o presidente da ABPA, Ricardo Santin, o acordo deve fortalecer ainda mais a relação entre os exportadores dos países do Mercosul e consumidores europeus. As novas cotas criadas pelo tratado deverão ser ocupadas, especialmente, por produtos de empresas brasileiras, apostou.
“A consolidação do acordo abre novas oportunidades de embarques para o mercado europeu, em condições mais vantajosas do que as cotas atualmente existentes para embarques de produtos brasileiros à União Europeia. As cotas atuais serão mantidas, e as novas estabelecidas pelo acordo deverão ser ocupadas, em especial, pelas exportações de produtos brasileiros”, afirmou Santin, em nota.
Entre janeiro e novembro deste ano, o Brasil exportou 205 mil toneladas de carne de frango para a União Europeia, gerando para o país receitas de US$ 749,2 milhões
O acordo concluído nesta sexta-feira estabelece uma nova cota para exportações de carne de frango do Mercosul aos europeus no total de 180 mil toneladas equivalente-carcaça (50% com osso e 50% de carne desossada) com tarifa zero. A cota deverá ser atingida ao longo de seis anos, com aumento gradual do volume exportado e a estabilização ao fim do período.
Também há cota para carne suína, no total de 25 mil toneladas, com tarifa de 83 euros por tonelada, e que segue a mesma sistemática gradativa determinada para a carne de frango, ao longo de seis anos.
Atualmente, o Brasil tem cotas específicas para exportar carne de aves para a União Europeia. A maior é de 124,5 mil toneladas para frango salgado, com tarifa intracota de 15,4%. O volume exportado acima da cota paga tarifa de 1,3 mil euros por tonelada. Também existem cotas para exportação de frango cozido, preparações de frango e peru e frango e peru in natura.
Frutas
A Associação Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas) destacou que, para a fruticultura brasileira, o acordo Mercosul-União Europeia abre portas para ampliar o acesso a mercados estratégicos e fortalecer a competitividade das nossas frutas nos países europeus.
“A redução de barreiras tarifárias faz justiça a competitividade brasileira no cenário global, visto que alguns países não tem barreira tarifarias para enviar suas frutas para Europa. Os exportadores de frutas brasileiras atendem as rigorosas exigências internacionais relacionadas a critérios sociais, ambientais e de governança. Esse avanço consolida ainda mais a fruticultura como um pilar fundamental nas exportações do agronegócio brasileiro”, afirmou Guilherme Coelho, presidente da Abrafrutas (Globo Rural)
Acordo: Quais os benefícios e as dificuldades do tratado para o País
Conclusão das negociações, que duraram 25 anos, foi anunciada nesta sexta-feira, 6, durante a Reunião de Cúpula do Mercosul, em Montevidéu
Na manhã desta sexta-feira, 6/12, em Montevidéu, foi anunciada a conclusão das negociações para o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia, após 25 anos de conversas e muitas idas e vindas. O anúncio não significa que o tratado já vá entrar em vigor — ainda há algumas etapas burocráticas importantes a cumprir, como a aprovação no Parlamento Europeu.
Ainda há resistências importantes na Europa, especialmente da França — ou, mais especificamente, dos agricultores franceses, que temem a concorrência dos produtos do Mercosul em geral e do Brasil em particular, considerados mais competitivos. Mas, neste momento, as avaliações são de que a França não teria forças para barrar o acordo.
Apesar do anúncio, os termos finais do tratado não foram divulgados. Por isso, não é possível fazer uma avaliação mais aprofundada do que pode significar para o Brasil. Mas, levando-se em conta o que já havia sido divulgado em 2019, quando as negociações também haviam chegado a termo (depois, esse acordo acabou se perdendo em meio a questões políticas e não chegou a ser votado nos parlamentos europeus), as estimativas são otimistas em relação aos efeitos para o Brasil.
Em termos gerais, o acordo zera ou reduz tarifas no comércio entre os blocos de milhares de produtos, criando uma área de livre comércio com mais de 700 milhões de consumidores e potencial de abrir mercado para empresas de todos os países — desde que se mostrem efetivamente competitivas. Nesse caso, alguns setores têm mais potencial de se dar bem do que outros.
Impacto no agronegócio
Um dos setores que mais têm comemorado o acordo é o da agropecuária. Na avaliação da própria diretora de Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, Sueme Mori, é essa a área que mais vai se beneficiar do acordo. “É precoce estimar qual será o tamanho da fatia e a receita que serão geradas, mas, de maneira geral, mesmo cotas pequenas geram potencial positivo. O setor de frutas é um dos que devem ter grandes ganhos”, disse. “A redução das tarifas, mesmo atreladas a cotas, é muito positiva para o setor.”
O acordo anunciado nesta sexta-feira pelos blocos prevê exportação de frutas e café do Mercosul à UE sem tarifas e sem cotas, segundo um documento resumido divulgado pelo governo brasileiro sobre o tratado comercial. Neste escopo, estão incluídas frutas como abacates, limões, limas, melões, melancias, uvas de mesa e maçãs. Outros produtos agropecuários do Mercosul estão sujeitos a cotas e tarifas reduzidas em relação aos tributos atuais, com condições como uma desgravação (retirada da tarifa) mais gradual.
Mori lembra, contudo, que, apesar das cotas e das tarifas definidas, há outras questões a serem negociadas entre os blocos para fomentar o comércio de produtos agrícolas, como protocolos sanitários. Atualmente, por exemplo, o Brasil não exporta carne suína ao bloco em virtude de não haver acordo quanto ao certificado sanitário internacional. “Mas o acordo eleva o patamar até mesmo para negociações fitossanitárias”, disse.
Os produtores de carne também mostraram entusiasmo. A Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA) disse que o País deve ocupar a maior parte das novas cotas de exportação que serão abertas quando o tratado estiver efetivamente em vigor.
“A consolidação do acordo abre novas oportunidades de embarques para o mercado europeu, em condições mais vantajosas do que as cotas atualmente existentes para embarques de produtos brasileiros à União Europeia”, disse o presidente da ABPA, Ricardo Santin. “As cotas atuais serão mantidas, e as novas estabelecidas pelo acordo deverão ser ocupadas, em especial, pelas exportações de produtos brasileiros.”
A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), por sua vez, classificou como “marco diplomático histórico” o acordo. Para a entidade, o tratado tem potencial de “transformar as relações comerciais entre as regiões de forma duradoura”.
O entusiasmo do agro brasileiro dá uma pista de por que os agricultores europeus, especialmente os da França, têm sido tão reticentes em relação à assinatura do acordo. O temor dos europeus é de não conseguir concorrer com os produtos brasileiros, com produção mais competitiva.
Ponto de atenção para a indústria
Se nas commodities, especialmente as agrícolas, o efeito do tratado é potencialmente positivo, o mesmo não se pode dizer dos produtos acabados, onde os europeus são mais competitivos. Nesse caso, há um ponto de atenção entre as empresas brasileiras.
O presidente da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), José Velloso, avaliou como “conceitualmente positiva” a celebração do acordo, uma vez que se trata de uma medida que amplia mercados e facilita as exportações do País.
Ele lembra, porém, que, para que o setor de máquinas se beneficie, é preciso que o País faça antes a sua “lição de casa”, aumentando a produtividade e a competitividade de seus produtos. “Não adianta só fazer o acordo externo. Você faz o acordo externo, óbvio, é um passo. Mas é preciso fazer o dever de casa, aqui dentro”, disse Velloso, citando a necessidade de o Brasil reduzir seu custo de produção, ampliar o crédito e trabalhar em mecanismo de financiamentos voltados à exportação.
“O acordo pode ser uma grande oportunidade no sentido de que nós vamos ter acesso a um mercado importante que é o europeu. Mas a gente sabe também que o Brasil tem hoje um problema muito sério de competitividade”, reforça o presidente da Abimaq. Ele cita, por exemplo, que hoje, o saldo comercial entre Brasil e Europa no setor de máquinas é negativo em cerca de US$ 8 bilhões e que, caso não haja melhora no setor, esse déficit corre o risco de ser ampliado.
O presidente da Abimaq também lembra que, com o fim das negociações entre Mercosul e União Europeia, é preciso agora ter atenção com as minúcias e os detalhes que serão discutidos nos próximos anos, antes que a nova realidade comercial passe efetivamente a valer. Ele destaca, por exemplo, que é, desde sempre, um pleito da Abimaq, a questão da chamada “regra de origem” de produtos de fora que chegam ao Brasil.
“O produto europeu tem muitos componentes de origem chinesa ou indiana, por exemplo. Então, um produto europeu que venha para o Brasil tem de ser europeu, ele não pode ser asiático. Uma preocupação que temos é como será fiscalizada a garantia dessa regra de origem”, explica Velloso.
Outro pleito defendido pela Abimaq no âmbito dessas negociações é a necessidade de o setor contar com um dos períodos mais longos dentro do cronograma de redução de tarifas de importação. “A expectativa é de que o setor tenha sua tarifa de importação reduzida em 10 ou 15 anos, a partir da vigência do acordo”, explica a diretora executiva de mercado externo da Abimaq, Patrícia Gomes.
A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), por sua vez, manifestou satisfação com o acordo comercial, destacando em nota o potencial de ampliação do comércio e dos investimentos produtivos. Diante da perspectiva de abertura à entrada de concorrentes europeus, a entidade diz que seguirá atuante na defesa das ações necessárias para elevar a competitividade dos setores produtivos brasileiros.
“A indústria brasileira recebe com satisfação a conclusão das negociações comerciais entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União Europeia (UE). A finalização do acordo é oportuna, pois garante aos membros do Mercosul um instrumento poderoso para lidar com as mudanças comerciais e geopolíticas em curso”, diz a Fiesp.
“A Fiesp seguirá atuante para que possamos aproveitar este período de reduções tarifárias e viabilizar as ações necessárias para elevar a competitividade dos setores produtivos do Brasil”, acrescenta (Estadão)