“Papel da mulher é muito maior que o do homem na segurança alimentar”

  • Mariangela Hungria conquistou prêmio por pesquisa inovadora com fertilizantes biológicos
  • Agrônoma da Embrapa Soja dedica prêmio às mulheres na ciência e lamenta dificuldade de aumentar presença feminina nas engenharias

Referência em estudos de microbiologia de solos, a engenheira agrônoma Mariangela Hungria, 67, marcou seu nome na ciência nacional mais uma vez ao ser escolhida como a vencedora da edição deste ano do World Food Prize, apelidado de Nobel da agricultura e da alimentação.

Pesquisadora da Embrapa Soja em Londrina (PR) desde 1991, Mariangela é primeira mulher brasileira a ganhar o prêmio e conquistou a terceira vitória do país.

Mariangela foi reconhecida por pesquisas que substituem fertilizantes químicos por microrganismos capazes de realizar a fixação biológica de nitrogênio (FBN), hoje utilizados em 85% da área cultivada de soja no Brasil.

Ela também desenvolveu um método de coinoculação da soja com bactérias fixadoras de nitrogênio e promotoras de crescimento. A tecnologia foi adotada em 35% das plantações no país, gerou economia de US$ 25 bilhões no uso de químicos e evitou a emissão de mais de 230 milhões de toneladas de CO₂.

No dia 26 de outubro, Mariangela recebeu o prêmio em uma cerimônia em Des Moines, capital do estado de Iowa (EUA). Foi a décima mulher entre os 65 laureados desde a criação do prêmio, em 1987.

O que seu prêmio significou para quem acompanha seu trabalho?


Foi muito tocante. Recebi centenas de emails e mensagens, e as mais emocionadas foram de mulheres falando como era importante uma mulher ter vencido. Era um lance de ‘eu nunca achei que eu fosse conseguir, mas você conseguindo vai me dar forças para seguir adiante’.

Nós temos que aprender a valorizar mais não só as engenheiras, mas todas as mulheres sem as quais a situação mundial de segurança alimentar seria muito pior. O papel da mulher é muito maior que o do homem na segurança alimentar, só que nunca é valorizado nem comentado: hortas domésticas e comunitárias, preparação alimentar com o melhor valor nutricional possível para a família, preservação das melhores sementes. A pequena agricultura familiar é muito feita por mulheres, e é essa a agricultura que põe a nossa comida na mesa.

Você percebe uma participação maior de mulheres em áreas como a engenharia nos últimos anos?


Eu até tinha uma percepção de que as coisas eram bem melhores do que, de fato, são. A gente progrediu, mas não tanto quanto poderíamos. Por exemplo, nas engenharias, somos por volta de 30%. As mulheres de diversas áreas da engenharia ainda sofrem muita discriminação. De modo geral na área de pesquisa, considerando todas as ciências, nós de fato já passamos de 50%. Na Embrapa, em 2014, as mulheres eram 30,26% do quadro. Hoje nós estamos em 2025 e somos 33%. Para mim, não é um grande avanço.

Você considera que o seu prêmio pode ajudar a fortalecer as atividades de pesquisa científica no Brasil?


Infelizmente, a gente ainda não tem uma política séria, robusta e confiável de ciência e tecnologia. Sempre falo que a premiação foi pela perseverança, resiliência e resistência frente às dificuldades. Nos Estados Unidos, fiz reuniões com várias associações de produtores de milho, e ficaram de boca aberta com o nosso avanço em produtos biológicos que eles não têm.

Mas eles pagam uma porcentagem de toda a produção de milho para um fundo de pesquisa, algo que tentamos muito com soja no Brasil faz anos e nunca conseguimos. Não é só o governo que tem que dar mais dinheiro. A gente tem uma agricultura que se fala que é tão importante para o PIB nacional, mas que não dá nada para pesquisa.

Qual o principal desafio para fazer com que tecnologias desenvolvidas pela Embrapa cheguem a diferentes cultivos?

Nós temos, hoje, soluções sustentáveis de microrganismos para mais de cem espécies. A Embrapa não vende nada: ou disponibiliza de graça ou faz uma parceria para uma empresa privada colocar um produto no mercado. O que acontece é que todas as indústrias daqui estão querendo saber só dos grandes, milho e soja.

Mesmo para culturas que são muito importantes no Brasil, como o feijão que nós comemos todo dia, elas não produzem porque só querem os milhões de dólares da soja e do milho. Isso é uma das nossas maiores frustrações, porque a gente trabalha, faz pesquisa, pensa principalmente no pequeno e médio agricultor, e no fim ele não tem nem acesso ao produto.

Depois de quatro décadas de pesquisa e produção científica e o reconhecimento internacional, quais são os seus próximos passos?

Sempre tive essa tristeza, viajando o Brasil inteiro, de ver áreas de pastagens degradadas, que é o nosso pior passivo ambiental.

Temos uma área de pastagens maior do que a área de todas as culturas, e pelo menos 60% está em algum estágio de degradação. Com a criação dos sistemas de integração lavoura-pecuária, surgiu a oportunidade de trabalhar com pastagens de gramíneas, e é com isso que eu estou muito animada e gostaria de terminar a minha carreira.

A gente está com resultados muito bons com microbiológicos em produção e qualidade, o que significa que o gado tem mais comida e um alimento melhor. Isso ajuda a recuperar as pastagens e liberar áreas para agricultura, que podem permitir mais do que dobrar a produção de todas culturas sem ter que derrubar nenhuma árvore.

As pessoas que usam muitos químicos e não adotam práticas sustentáveis têm que se conscientizar que [a mudança climática] vai ser cada vez pior, e que esses químicos estão envolvidos na emissão de gases de efeito estufa. Trabalhar com fertilizantes biológicos é muito importante porque as mudanças climáticas globais estão aí, só não vê quem não quer.

RAIO-X | MARIANGELA HUNGRIA

Nascida em São Paulo em 1958 e criada em Itapetininga (SP), Mariangela Hungria da Cunha é engenheira agrônoma com mestrado em Solos e Nutrição de Plantas pela USP e doutorado em Ciência do Solo pela UFRRJ. Ingressou na Embrapa em 1982, na área de Agrobiologia, em Seropédica (RJ), e desde 1991 atua na Embrapa Soja. Professora dos programas de pós-graduação em Microbiologia e Biotecnologia da Universidade Estadual de Londrina, Mariangela foi incluída na lista Time 100 Climate 2025 como uma das personalidades mais influentes do mundo em ações climáticas (Folha)

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